E por que não houve manifestações por Bolsonaro, ao ser declarada sua inelegibilidade? Porque não houve patrocinadores que pagassem os ônibus, distribuíssem sanduíches e lanches, montassem barracas com colchões e cobertores, como antes diante dos quartéis!
Por Rui Martins
Havia um temor no ar: e se os bolsonaristas saíssem às ruas quando o Tribunal Superior Eleitoral decidisse pela inelegibilidade de Bolsonaro? Como agir caso os evangélicos se colocassem de joelhos nas rodovias, nas ruas e bloqueassem Brasília e as principais cidades? E se houvesse manifestações no Exterior? E se Deus interviesse como acontecia no Velho Testamento?
Ora, foram temores desnecessários. Nada ocorreu nas ruas e, se houve protestos, ficaram confinados às redes sociais, às fake news, às pregações nos púlpitos ou às conversas de pastores nas portas das igrejas, como constatou e conta o correspondente do jornal suíço Le Temps, da porta da igreja do Engenho Velho, em Salvador da Bahia. O pastor local, Antônio Marcos, contou mesmo ser eleitor de Bolsonaro, “pois ele defende os valores da família e respeita a palavra de Deus”.
Na falta de manifestações públicas nem nas portas das igrejas, conta ainda o correspondente do jornal suíço, ter circulado pela rede Instagram, um apelo do mais jovem deputado federal bolsonarista, o mineiro Nikolas Ferreira, para os evangélicos orarem pelo Brasil. Esse apelo foi mais tarde formalizado pelo deputado, para se transformar numa espécie de rede de oração noturna pelo ex-presidente e pelo Brasil.
Não se sabe dos resultados concretos dessa prática, porém essa cadeia de orações pode assegurar uma espécie de união entre os fiéis, a fim de manter vivo o culto pelo Messias crucificado pela inelegibilidade por oito anos.
Resistirá o movimento bolsonarista, que não tem o formato próprio de uma ideologia política mas é um subproduto de ideias e conceitos fascistas, ao passar dos longos oito anos, sabendo-se da volubilidade do eleitorado populista brasileiro? O janismo, exemplo de um movimento populista, embora tivesse conseguido mobilizar o eleitorado e criar o mito do combate à corrupção, valendo-se da simbologia da vassoura, durou alguns anos, mas não passou de um fogo de palha.
Jânio se deixou levar pelo desejo de ter plenos poderes e seu golpe da renúncia acabou por lhe ser mortal. Esperava uma mobilização popular que não houve. Porém, a história só se repete até aí: Bolsonaro foi derrotado nas eleições e foi condenado à inelegibilidade, sem que isso provocasse reações populares, e talvez tenha amargado pessoalmente a mesma decepção do Jânio Quadros.
Entretanto, o populismo janista era frágil por se basear apenas no seu prestígio pessoal e no seu carisma. Jânio não dispunha de um partido ou de uma estrutura de apoio e nem utilizou dos quatro anos do seu mandato presidencial para construí-la, ao provocar o choque abortivo da “renúncia” ao seu mandato.
Ora, o populismo bolsonarista pode parecer uma conquista pessoal, mas não é. Bolsonaro acabou sendo escolhido por ter um formato que se adaptava a um projeto maior, elaborado pela extrema direita norte-americana, contendo negacionismo e conspiracionismo como fatores desestruturantes da sociedade, ancorados num fundamentalismo religioso primário, capaz de substituir reivindicações sociais da vida cotidiana por ilusões espirituais e recompensas pós mortem.
Por isso, o populismo vivido por Bolsonaro nesta primeira fase, pode sobreviver encarnando-se em um (ou uma) outro líder com linguagem ou postura parecidas, desde que mantido o revestimento religioso. Zema e Michelle parecem, no momento, os mais capazes de herdar os 30% desse tipo de eleitores bolsonaristas. Em síntese, a extrema direita se tornou atraente para as camadas populares, com sua roupagem fundamentalista evangélica, seus slogans “Deus acima de tudo”, “Deus, Pátria e Família” e mobilizam suas forças, entre salmos e hinos, contra o pecado, contra os homossexuais, contra o aborto e ignoram as reivindicações sociais.
Porém, essa versão religiosa fundamentalista da extrema direita brasileira tem seu calcanhar de Aquiles. Na prática, ela é inoperante. E com isso não contava Bolsonaro, que havia tudo planejado: aliança com os militares, armas para o povo, discurso do ódio e indicação dos inimigos a serem derrubados.
Por mais desvirtuada que tenha sido a mensagem evangélica, ela continua sendo pacífica. A principal arma continua sendo a oração. Ora, oração com ou sem jejum não derruba governo e nem faz revolução.
De nada adiantaram os apelos diretos ou indiretos de Bolsonaro para seus fiéis partirem para a luta, destruírem seus inimigos no STF e o ajudarem a tomar o poder.
Os evangélicos podem ser manipulados, enganados, apatriotados mas, e isso é inerente à sua formação ideológica ou religiosa, eles são pacíficos. E foi aí que falhou o projeto insurrecionista de golpe de Estado armado do ex-presidente Bolsonaro. Seus “soldados” não eram de guerra.
E lá foram eles, no dia 8 de janeiro, para tomar as sedes do governo, do parlamento e do judiciário. Mas ninguém tinha nem estilingue. Podiam quebrar coisas, mas seriam incapazes de matar. E foi assim que Bolsonaro armou o povo, tomou os prédios, mas perdeu a guerra. Seus seguidores tinham se tornado fanáticos, mas são incapazes de matar porque Cristo proíbe. Ainda bem. Exército e seguidores de Bolsonaro formavam a enorme tropa que atacou Brasília, dirigida por covardões escondidos nas areias de Orlando, nos EUA.
E por que não houve manifestações por Bolsonaro, ao ser declarada sua inelegibilidade? Porque não houve patrocinadores que pagassem os ônibus, distribuíssem sanduíches e lanches, montassem barracas com colchões e cobertores, como antes diante dos quartéis!
(Publicado originalmente no Observatório da Imprensa, Versão sonora no Youtube O olhar crítico do Rui Martins)
Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.