Segunda, 06 de Fevereiro de 2023 às 07:13, por: CdB
O que é o bolsonarismo? Tal pergunta é de grande importância para entender o contexto atual do Brasil e da crise capitalista nesta quadra histórica. Para alguns, um breve acidente da história, para outros um movimento urdido por fake news e fanatismo. No entanto, na realidade, não se pode considerar acidental um fenômeno capaz de mobilizar metade do país e cuja potência é capaz de levar milhares às ruas. Há aí uma mola histórica fundamental agindo com raízes profundas na sociabilidade e no tempo.
Tão pouco as considerações de ordem psicologizante ou cognitivas podem explicar fenômenos políticos e sociais complexos. Tratar o problema do ângulo da desinformação é considerar ser a sociedade brasileira adequadamente informada, algo falso, pois nem as mídias tradicionais chegam a informar de modo correto o cidadão médio, capturadas que são por interesses corporativos e do grande capital.
Inclusive, a desconfiança frente a estas mídias é umas das fontes alimentadoras da legitimidade das teorias da conspiração, cuidadosamente acalentadas pela extrema-direita. Mas essa desconfiança provém da própria ruína do valor social da verdade, torcida e distorcida nos vários interesses particulares de forças políticas e econômicas. Neste quadro, todo saber esconderia um poder e ninguém mais é creditado como objetivo e imparcial, nem mesmo acadêmicos e jornalistas, pois no fundo todos buscam apenas o próprio benefício, manipulando a opinião pública para consegui-lo.
Mas a psicologização tem consequências ainda mais nefastas não apenas porque foi usada no passado para justificar perseguições a dissidentes, tanto nos regimes autocráticos quanto em democracias liberais, mas porque oculta a dinâmica social do fenômeno. Traça-se uma linha do comportamento normal - geralmente aquele de agrado das elites - e toda forma desviante é taxada de alucinada, como se não fossem comportamentos cujo sentido aponta para uma crise profunda do corpo social. Na verdade, o desviante é aí uma tendência de subversão da sociedade.
O esforço do Bozo era para enfraquecer
as instituições da República
Nisto, entramos em um aspecto essencial do bolsonarismo: ele é uma forma de subversão sociopolítica. Isto pode ser facilmente visualizado nas ações do ex-presidente fujão durante seus quatro anos de mandato. O que a imprensa imprecisamente chamava de enfraquecimento das instituições é, na realidade, uma forma de subversão delas visando sua mutação para um tipo mais repressivo, excludente e menos isonômico.
Todas as ações de Bolsonaro eram estrategicamente pensadas no sentido de debilitar os poderes da República e travar os mecanismos de garantias legais. Neste processo, a própria Presidência era o alvo principal, com o ex-mandatário agindo na erosão contínua de sua autoridade e dignidade, fato contraditório com as suas possíveis aspirações ditatoriais.
Na realidade, o Capitão Covarde não queria ser ditador. Se ele queria implantar uma ditadura, não era aos moldes clássicos, pois seu objetivo era o enfraquecimento sistemático das instituições republicanas de modo a abrir caminho para a ação desenfreada de médios e pequenos empreendedores país afora, de milicianos a pastores, passando por garimpeiros, ruralistas, comerciantes, estelionatários e agiotas. Enfim, a gama de indivíduos passíveis de serem rotulados por pequena burguesia, da cidade e do campo.
Os grandes inimigos destes indivíduos são os trabalhadores, as grandes corporações e o Estado. Vivem um martírio, se equilibrando entre tirar o couro da classe trabalhadora, resistir à exploração do grande capital e driblar as normas e leis estatais. No entanto, seu grande inimigo é o Estado, visto por eles como sendo a personificação de todo mal, empecilho para seus lucros. O fiscal, o juiz, o policial disciplinado, o militar legalista, todo aquele de alguma forma personificador da legalidade republicana é seu inimigo mortal.
Eles são inimigos da República porque esta significa a legalidade isonômica, onde todos são iguais e a lei é imparcial. Este grupo só reconhece a lei quando ela está em seu favor, por isso, para ele, ao invés da lei o que vale é a força. Os fracos não devem ter lugar ou proteção, devem ser ou explorados ou exterminados.
De fato, quando Bolsonaro enfraquece as instituições, seu objetivo é fortalecer - empoderar, no jargão neoliberal - estes indivíduos. Isto estava resumido em sua consigna de menos Brasília, mais Brasil, ou seja, menos leis republicanas, mais pequenos ditadores dos grotões. A ditadura almejada por Jair Messias era a da ralé capitalista.
Para onde vai o ouro do garimpo ilegal senão para
joalherias e bancos das grandes metrópoles brasileiras
e estrangeiras?
Ralé, mas com conexões e afinidades com a elite econômica. Em primeiro lugar, a desestruturação de regras trabalhistas, normas ambientais e a privatização são igualmente um projeto dos grandes capitalistas. Em segundo lugar, existe uma simbiose entre a ralé e a elite, pois a última lucra se apropriando de (grande) parcela do valor acumulado pela primeira. E isto acontece por muitos caminhos, seja comprando com valor depreciado os produtos daquele grupo - comodities agrícolas e minerais, produtos têxteis ou mobiliários, etc - vendendo a eles produtos industrializados, cobrando royalties de serviços e aluguéis de equipamentos, fornecendo armas, seja, por fim, faturando com juros de empréstimos e taxas por serviços bancários. De qualquer forma, os grandes empreendedores possuem interesse direto na pujança dos pequenos.
Daí o bolsonarismo sempre ter tido apoio do grande capital. Poderíamos dizer que sua base estava nas massas da ralé burguesa dos grotões, mas seu centro passava diretamente pela Avenida Paulista e pela Faria Lima.
Em um país de MEIs (Micro Empreendedores Individuais), a lógica de ralé capitalista consegue se generalizar mesmo entre os trabalhadores, pois muitos deles não se veem mais enquanto assalariados, mas na qualidade de empreendedores, prestando serviços ao grande capital e sendo patrões de si mesmos.
A ideologia neoliberal transforma
o trabalho precário em empreendedorismo.
Por fim, a crise capitalista e de suas instituições acaba arrastando milhões de outros trabalhadores para o colo da extrema direita, pois sua retórica antiestablishment os ganha enquanto explicação adequada para seu infortúnio social, em um cenário de ausência completa de um forte movimento revolucionário. Diante da precariedade da vida, do desemprego, da inflação, da cafajestagem dos partidos, da desumanidade da Justiça, a extrema direita oferece sua panaceia de que a libertação só pode vir pelo aprofundamento do egoísmo e do salve-se quem puder capitalista. Contra os males do capitalismo, mais capitalismo!
O famoso mantra de Bolsonaro, é preciso mudar tudo que tá aí, cala fundo na alma dos desalentados e despossuídos. Por isso, o projeto bolsonarista tem forte apelo popular a ponto de dividir a votação para presidente e ganhar governos estaduais e legislaturas.
Neste sentido, o bolsonarismo é um projeto popular de subversão das instituições, um projeto de direita, bem entendido, mas popular, e por isso ambivalente aos olhos da burguesia brasileira, pois, ao mesmo tempo em que aprofunda a desregulamentação social e econômica - pauta encampada por ela desde a redemocratização - também abre espaço para a turbulência política, de difícil manejo. Daí ela ter optado, majoritariamente, pela restauração do petucanismo, reencaminhando a pauta reformista pela via segura do gradualismo e dos acordões de bastidores.
Neste quesito, o bolsonarismo é um fenômeno inédito na história brasileira, não tendo paralelo com nenhuma experiência pretérita. Pois é pela primeira vez que um movimento de direita assume feições claramente subversivas e insurgentes no país, tendo sido antes a prática direitista sempre o de impor a ordem, muitas vezes rompendo a legalidade, mas sem destruir as estruturas republicanas. Neste sentido, o Golpe de 1964 é lapidar, pois nele as forças reacionárias interromperam a democracia e subjugaram as instituições da República, sem, contudo, enfraquece-las. Efetivamente, ocorreu um fortalecimento delas, com o executivo tutelando a tudo e a todos.
Enquanto a direita é revolucionária, a esquerda
defende a ordem.
No caso bolsonarista, apenas o Integralismo poderia se aproximar de ser um parâmetro, mas este jamais conseguiu o mesmo nível de inserção popular e nem a mesma eficiência, restringindo-se às camadas médias urbanas.
Neste cenário, a esquerda se comporta enquanto fiadora da ordem, paradoxalmente assumindo uma função conservadora frente a uma direita revolucionária. E esta é nossa tragédia, pois a crise capitalista, igual Pantagruel, vai engolindo a tudo e a todos, impondo a necessidade de mudanças. Mas tais, nesta quadra histórica, são pontificadas apenas pela direita, tragicamente para todos nós. (por David Emanuel Coelho, publicado originalmente no blog Náufrago da Utopia.Direto da Redaçãoé um fórum de debates pubçicado no jornal Correio do Brasil pelo jornalista Rui Martins.