O filme Propriedade, de Daniel Bandeira, apresentado na mostra paralela Panorama, foii um dos mais fortes e mais marcantes do Festival de Cinema de Berlim. O filme. uma alegoria ou parábola de como ocorre uma revolução, foi bastante aplaudido após sua exibição no cinema Cubix. Mostra, com cenas de raras violências, a revolta dos trabalhadores numa fazenda, com o assassinato do capataz e dos proprietários. Entrevistado, seu realizador Daniel Bandeira externou seu desejo de que o filme pudesse funcionar como um estopim conscientizador contra a exploração dos trabalhadores. Abaixo, segue a entrevista com Daniel Bandeira.
Por Rui Martins, de Berlim
Rui Martins – Daniel Bandeira, você fez um filme forte e tocante, que trata de maneira genérica de uma questão importante: a da propriedade daquelas terras em que tantos trabalharam, inclusive escravos. Filme que demorou quatro anos para ser feito e que quase estreou ainda no governo Bolsonaro
Daniel Bandeira – Ficamos muito ansiosos com a possibilidade de estrear o filme na gestão Bolsonaro. De fato, é um filme que aborda a questão da escravidão, mas principalmente, a atualização da escravidão. As camadas de escravidão vão se acumulando e chegam até o presente através de uma relação, que pressupõe uma hierarquia social de trabalho muito desigual e muito dura. Esse estado de tensão diário, acho que a gente já vive de certa maneira e só transpusemos para o cinema.
RM – Você conseguiu reunir num só filme toda uma desesperança que existe entre os trabalhadores. Mesmo no Sul do país existem os Uber, toda essa gente é explorada, como é que você chegou a conceber essa revolta?
Bandeira – Eu sinto esse clima de tensão na minha vivência pessoal desde a primeira eleição de Dilma, que mostrou o país dividido entre o Norte e o Sul. Foi esse o momento em que senti essa situação. O projeto já existia, mas apenas a partir da ótica dessa mulher presa dentro do carro. Mas eu sentia a necessidade de entender quem são essas pessoas que estão do lado de fora, quais são suas motivações, desejos, medos, como vivem. Então, o projeto acabou se transformando numa balança entre esses dois lados, entre essa polarização, que faltou nessa década, sem comunicação entre eles a ponto de um se tornar o vilão do outro. Um acaba se transformando no inimigo do outro. Essa é uma situação, para mim, de não ganhadores, essa é uma situação que tende, para mim, num futuro próximo, a um conflito muito tenso. A gente já teve uma situação muito dura, agora no começo do ano, com a invasão dos prédios dos Três Poderes, e isso, para mim, foi a manifestação dessa tensão e dessa incomunicabilidade. Eu acho que se a gente não abre essa janela para as pessoas conversarem e entenderem o que o outro está passando, a tendência é a de explosões mais intensas de tensão social.
RM – No ataque em Brasília houve manipulação, mas no seu filme trata-se de uma revolta popular. Como você vê esse risco no Brasil?
Bandeira – Eu tenho contatos com intelectuais de esquerda que acreditam na conscientização popular e na educação popular. Eu também acredito nisso, mas leva muito tempo para criar essa estrutura. E eu acho que essa tensão não vai esperar esse tempo todo. Vai ser preciso haver concessões para que as necessidades básicas sejam satisfeitas. Se a gente não começar a se entender, se a gente não começar a fazer concessões de ambos os lados, poderemos chegar a uma situação de não retorno. Há quatro anos convivemos com essa situação de quase não retorno, mas ainda é uma situação na qual devemos ficar atentos.
RM – Não haveria um antídoto, uns panos quentes que poderíamos utilizar, no caso, os evangélicos, adiando para depois a revolta dos pobres? Vocês sofrem, mas quando forem para o céu estará tudo resolvido. Tenho escrito que o foco da extrema-direita evangélica está na porta e no púlpito das igrejas evangélicas.
Bandeira – A religião evangélica vem ganhando popularidade, nas últimas décadas, por um vácuo da administração pública do Estado. Eu espero que os evangélicos reflitam sobre o que sua própria denominação, seus pastores, vem orientando e vem nutrindo seus fiéis. Se houver um discurso de beligerância, então eu recomendo que reflitam, que questionem seus colegas e não aceitem tacitamente tudo aquilo que vem do pastor. Cada um deve questionar a estrutura do poder em que vive para podermos olhar um para o outro e orientar nossa relação pessoal.
RM – Quando foi a estreia do filme?
Bandeira – Na semana seguinte à eleição de Lula, no Festival de Cinema do Rio de Janeiro. O último dia de filmagem foi no primeiro turno das eleições.
RM – E qual foi a reação?
Bandeira – No Festival do Rio as pessoas ainda estavam encharcadas com a campanha eleitoral, que foi uma campanha muito dura. Embora o filme não mostre necessariamente tender para uma ou outra posição, para um lado ou para o outro, acho que ele carrega uma pulsão de violência, na qual a gente viveu esse tempo todo, e ele não oferece uma catarse, mas um tipo de manifestação que estava sendo necessária, para se entender como estado de tensão, irromper mesmo que o resultado seja desastroso, porque viver sempre oprimido, isso não é vida. Faz quinhentos anos que se vive essa vida. Quando se fala em violência justificada, deve haver um certo código moral. Mas quem oferece esse código moral? Quanto devo apanhar para poder revidar? E de que maneira posso revidar para ser justificada minha revolta? Toda vez que acontece uma greve, quem é pobre é considerado vagabundo porque não trabalha o suficiente para ser rico. Então existem distorções que levam ao aumento da pressão.
RM – Mas voltando à sua estreia no Rio, os bolsonaristas poderiam utilizar o filme para dizer vejam aí como pode acontecer…
Bandeira – É que eles costumam distorcer, mas como vejo meu papel pessoal e como realizador do filme? Eu pessoalmente penso meu filme como um estopim, eu não quero ensinar ninguém a como lidar com essas situações. não é meu objetivo sequer instigar a um grande levante ou que haja uma violência. Eu gosto de ver o filme como um estopim, uma bomba: qual será o efeito dessa bomba, se vai estourar ou não, qual será o seu raio, quem sairá machucado, ou se a bomba simplesmente não vai explodir, disso não sei, não tenho uma noção muito clara, mas quero sim instigar algum tipo de ação, seja qual for.
RM – E Lula é uma esperança?
Bandeira – Acho que sim. Porque de qualquer forma a gente saiu de um governo sem qualquer parâmetro de governo. A gente saiu de um estado de barbárie completa, eu acho que vivemos um estado de exceção. Agora, agora é a oportunidade de revermos a forma como lidamos com a política, como a praticamos e como a exercemos todo o dia e não só no dia da eleição. A forma como nos relacionamos com o governo. Ganhamos quatro anos para ver a forma como nos relacionamos com a política.
RM – Como foi feita a seleção dos atores? O trabalho foi muito bem-feito, embora sendo muitos, tudo foi bem sincronizado…
Bandeira – Para o papel da Teresa, que ficou presa dentro do carro, procurei uma atriz já conhecida do público, como a Malu Galli, que tem um trabalho consistente na televisão, mas também no teatro. No nosso primeiro contato, quando ela tomou conhecimento da história do filme, houve uma grande compreensão entre nós, mesmo porque se relacionava com o momento político. Com relação aos atores trabalhadores na fazenda, contei com o apoio do Samuel Santos, também ator no filme e coordenador de um grupo de teatro no Recife; utilizando seus contatos chegamos ao conjunto de atores. E também com a colaboração de Marcelo Caetano, que nos ajudou muito. Com essas parcerias chegamos ao conjunto dos atores. Muitos deles possuem uma convivência direta com o trabalho rural e conhecem bem essa realidade. Isso foi reforçado com o trabalho de preparação do elenco.
RM – Você se baseou em alguma revolta já ocorrida?
Bandeira – Revoltas de trabalhadores contra seus empregadores são coisas que acontecem desde sempre e isso faz parte da história do Brasil. Só que é uma parte de nossa história com a qual não temos muito contato. Não se fala se essas revoltas são possíveis e nem que se pode pressionar tanto a esse nível a ponto de se causar revoltas que podem ser violentas. Existem diversos movimentos desse tipo, mas pouco conhecidos. Os movimentos grevistas nas últimas décadas foram muito sufocados. O filme causa maior impacto quando apresentamos essa classe trabalhadora que se insurge de tal maneira. Na vida real já aconteceu de os trabalhadores não só se amotinaram como assassinarem os proprietários das terras.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.