O menino Miguel morreu em 2020, com cinco anos, ao cair do nono andar de um prédio de luxo no Recife. Sua mãe trabalhava como doméstica no apartamento de luxo pertencente ao então prefeito de Tamandaré, PE. A esposa do grande homem, como consequência, também desfrutava de uma existência de luxo e não poderia ficar sem sua serviçal durante a pandemia de covid.
A mãe do Miguel foi obrigada a trabalhar quando deveria estar a salvo em casa, cumprindo o lockdown obrigatório,
E, como a escola do filho estava fechada porque, ela sim, o respeitava, teve de levar a criança para o emprego.
Estava passeando com o cachorro dos patrões quando Miguel, deixado aos cuidados da primeira dama, perdia o sorriso para sempre.
A vida do Miguel não tinha preço, mas aquele casal merecia despender uma enormidade como indenização, o que decerto lhe doeria muito mais do que o apagar do brilho de um olhar infantil e o desvanecer de um sorriso inocente (o figurão que se cercava de tanto luxo chegava ao cúmulo de colocar o salário da empregada na conta da sua prefeitura!).
A Justiça primeiramente resolveu que mãe e avó deveriam receber um total de R$ 2 milhões.
Agora o Tribunal Regional do Trabalho decidiu que era demais para quem valia tão pouco e estipulou uma indenização de apenas R$ 500 mil para cada uma.
Só o sorriso do Miguel, para mim, faria jus a um mínimo de R$ 500 milhões. Mas, isto não sou eu quem determina. São eles, os que aplicam sem compaixão as regrinhas que sacramentam a desigualdade social.
A relatora do processo qualificou de excessivo o valor aplicado pelo juiz da 1ª instância:
“Deve-se considerar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como os parâmetros do art. 223-G da CLT, estabelecendo-se uma relação adequada entre a gravidade da lesão, o porte econômico dos empregadores, a condição pessoal das ofendidas e o valor da indenização imposta”.
Vou parar por aqui, porque se teclar tudo que me vem à cabeça, acabarei me tornando eu o réu dessa justiça canalha em seus fundamentos e procedimentos, segundo a qual o sorriso de uma doce criança é precificado partindo do critério de que quem produzira a mercadoria tinha baixo valor de mercado.
E quanto valem os que vivem no luxo mas esperneiam na Justiça para aviltar o valor, não só material mas também simbólico, da vida inteira que foi roubada de um negrinho pobre?
Por Celso Lungaretti, jornalista, escritor, militante contra a Ditadura militar.
Direto da Redação é um fórum de debates publicado no jornal Correio do Brasil pelo jornalista Rui Martins.