Rio de Janeiro, 24 de Dezembro de 2025

O som que ouvimos ao redor é dos jagunços que estão chegando

Análise do filme 'O Som ao Redor' e suas implicações sociais no Brasil contemporâneo, explorando a relação entre jagunços e a classe média.

Terça, 23 de Dezembro de 2025 às 20:10, por: Arlindenor Pedro
O som que ouvimos ao redor é dos jagunços que estão chegando | O Som ao redor”, do Kleber Mendonça Filho
O Som ao redor”, do Kleber Mendonça Filho


“Os passos estão se tornando mais nítidos. Um pouco mais próximos. Agora soam quase perto. Ainda mais. Agora, mais perto do que poderiam estar de mim. No entanto, continuam a se aproximar. Agora não estão mais próxima, estão em mim. Vão me ultrapassar e prosseguir? É a minha esperança. Não sei mais com que sentido percebo distâncias. É que os passos agora não estão somente próximos e pesados. Já não estão somente em mim. Marcho com eles.”
Clarisse Lispector — o recrutamento.


Revi o filme “O Som ao redor”, do Kleber Mendonça Filho, o mesmo diretor de Bacurau, Aquarius e agora do prestigiado Agente Secreto. Se você ainda não viu, vale a pena ver. Merecidamente, é considerado um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Desta vez, o vi com uma lupa diferente, pois estamos tratando aqui de uma obra que exige atenção, pois a sua genialidade está escondida: precisa ser desvendada.

O meu assistir ao filme, então, deu prioridade à relação da sua história com a realidade social do Brasil, trazendo o simples fato da instalação de uma milícia local na cidade de Recife para o contexto nacional de um Estado Falhado, fenômeno que vemos se acentuar no país.

À luz desta questão fiquei me perguntando o que pode explicar o porquê das reações diferentes dos personagens do filme, ao fato do controle do espaço em que vivem ser organizado e dirigido por elementos estranhos e aparentemente dissociados do seu convívio social-os homens que vendem segurança para o seu dia-a-dia. Verificamos, então, que mesmo no espaço urbano a presença do Estado é distante, e ninguém se importa se ele está sendo substituído.

Embora consciente de que um filme deve ser sempre analisado no seu todo, integrando componentes como estética, som, etc., me ative propositalmente, somente a este aspecto a que me referi anteriormente, face à necessidade que tenho em entender este fenômeno que tem um fator determinante na divisão de opiniões e postura política dos brasileiros nestes tempos em que vivemos.

Nesse sentido, o filme cumpre o seu papel: de forma sútil, vai nos desvendando esta problemática através do cotidiano de seus personagens.

Numa região nobre de Recife, um coronel, Sr. Francisco (Waldemar José Solha), dono de engenho decadente, agora num espaço urbano, gere seus imóveis, em condomínios para classe média, através do trabalho de seus filhos e netos. Não produz mais nada, vive, como se diz no jargão popular: de renda. Seu império, agora não mais rural, são os seus imóveis e suas cercanias. Sua família se espalha por ali e convivem na rotina das grandes metrópoles e da pressão social nela existente. E esta pressão é visível: notamos de imediato que o medo ali está instalado, pelas grades nas portas, janelas e as câmeras de controle. Nesse espaço de concreto a classe média que pode pagar para ali conviver, vive os seus conflitos, no estilo próprio de consumo e de disputa de vaidades, de posse de automóveis, bens de consumo, etc. Como disse anteriormente, a genialidade deste filme está no detalhe, ao ser a forma que o diretor encontra para nos mostrar esta realidade.

Aqui o implícito vai se mostrando, pouco a pouco.

Numa rápida cena, uma das personagens, Bia (Mambê Jinkinkgs), que receberá na portaria do seu prédio um aparelho novo de televisão, é agredida por uma vizinha, que também fez uma compra de outro aparelho, da mesma marca. É quando a vizinha percebe, desolada, que a sua é de polegada inferior. O filme não se importa em nos dizer a profundidade da relação beligerante de ambas, mas faz questão em colocar em destaque um forte sentimento: inveja, e, além disso, competição! Várias cenas com estas sutilezas vão se repetindo, enquanto o roteiro vai mostrando que, quanto a vida ali prossegue, um elemento novo ali se instala: a chegada de um grupo de pessoas que propõem candidamente a cobrança de um serviço de segurança em troca de mensalidades fixas.

A reação dos moradores, que não contestam a necessidade desta segurança particular, nos indica que eles já esperavam isto acontecer. Agora, os novos protagonistas terão somente que firmar uma aliança com o coronel — o verdadeiro dono do pedaço. E isto eles fazem sem dificuldades, colocando o coronel somente uma exigência: os seguranças não poderão tocar as mãos no seu neto, um jovem ‘playboy, que volta e meia promove arruaças e roubos na região, que ele considera um feudo da sua família. Temos aí, mais uma marca sutil do filme, para nossa reflexão.

Os seguranças, através de seu chefe Clodoaldo (Irandhir Santos), por algum motivo, ameaçam o neto do coronel. O jovem vai até eles e, sem sentir medo, devolve a ameaça, dizendo que eles não estão tratando com os moradores de favelas e que aquele espaço onde eles estão pertence à sua família, pessoas por demais poderosas. Vemos, então, que aí se defrontam duas forças diferentes, embora convirjam para a mesma ação: conter a pressão dos pobres, que com seus mocambos envolvem as ilhas de classe média do Grande Recife. O desfecho do enredo do filme nos mostrará, mais adiante, que uma das forças, a dos seguranças, oriundos dos campos, da periferia, adquiriram uma impressionante autonomia. E é isto o que nos faz parar aqui, para refletir e tentar chegar ao cerne desta questão!

Todos nós já conhecemos o significado da palavra “jagunço”. Ela ganhou notoriedade nos meios urbanos através das reportagens feitas por Euclides da Cunha, quando cobriu a Guerra de Canudos, e pelo seu conhecido livro, Os Sertões. Também o termo foi bastante visitado nas obras regionalistas de escritores como José Lins do Rego, Graciliano Ramos ou mesmo em Jorge Amado. Mas foi com certeza em Guimarães Rosas que a jagunçada teve seu momento mais áureo, com a descrição poética das guerras rurais no Grande Sertão-Veredas.

Hoje o jagunço tomou rumo, e se espraiou pelo Brasil. Está associado às ações dos garimpeiros ilegais em territórios indígenas, nas ações de grilhagens, pistolagens do interior profundo ou mesmo, contemporaneamente, às milícias urbanas, nascidas no Rio das Pedras, no Rio de Janeiro. Poderíamos dizer que o Brasil criou um personagem próprio, pronto para ser exportado — uma macabra contribuição ao mundo civilizado!
Parente direto do feitor colonial, o jagunço é o elo entre o patrão e os seus dominados. No alpendre da Casa Grande, ele recebe a missão do coronel, e garante, pela sua força e armas, a sua aplicação no raio de mando do patrão. Não é dada à lida da terra. Suas mãos são para lutar, guerrear. Está voltado para o preparo físico e para o mando. Embora de origem humilde, ele despreza os mais pobres, os trabalhadores do campo. Almeja um dia ser também coronel — um empreendedor. Até então, cumpriu fielmente as missões dadas. Mas, no fundo, paira entre ele e o coronel uma tensão — um sentimento de ódio e vontade de emancipação.

E é este ódio, que vai tomando o roteiro do filme que assistimos. Na verdade, o filme não toma o caminho de nos mostrar a pressão dos pobres em relação à classe média aldeada em seus condomínios. Estes pobres aparecem no filme rapidamente, como figuras sem rostos. Os segmentos mais claros são os donos do poder, a classe média urbana e este novo personagem que toma visibilidade: o jagunço, que aqui se expressa através dos seguranças. Isto fica expresso, na linguagem poética do filme, quando o avô e seu neto, João (Gustavo Jahn), juntos, tomam banho em uma ducha de seu engenho em ruínas, e num repente as águas se tornam vermelhas de sangue. Sangue e ódio! Expressão de uma sociedade com muitas dívidas a acertar! Um continental poço de mágoas.

Na crise de dissolução do capitalismo, através dos colapsos que vão se acentuando de ano para ano, com milhões de pessoas — refugiados sem pátria, sem perspectivas de uma vida digna — as disparidades entre os povos e a ruína se aprofundam, ao lado da acumulação sem precedentes de riquezas. Associados a uma crise climática acelerada, à ocorrência já usual de pandemias sanitárias e dissolução de empregos, vemos os próprios conceitos de Estado Nacional entrar em crise e a ocorrência de Estados Falhados, em todo o globo. Com disputas em muitos territórios, parece que ingressamos num estágio de guerra híbrida, onde se instalou uma tensão permanente e um medo generalizado — em todo o mundo, o futuro é incerto! O capital vai se desintegrando e não se construiu ainda uma saída para este impasse.

No Brasil, de um capitalismo tardio e incompleto, esta crise se expressa cruelmente e avassaladora. Um fosso se estende entre as classes sociais, atingindo as classes médias, roubando-lhes empregos e perspectivas de ascensão social. Cresce o espaço para o racismo estrutural, vigente na sociedade desde o seu nascimento. O medo está presente em todos os setores sociais. A insegurança se abate sobre todos!

Ao mesmo tempo, nas favelas e periferias, vai se instalando um modo próprio de vida, autônomo do Estado, onde o tráfico e o crime organizado vai tomando espaço e criando suas próprias leis, até mesmo num estágio de tribunais clandestinos, mas amplamente reconhecidos pelas comunidades onde ele ocorre. O Brasil vai se transformando num Estado Falhado, onde crescem as áreas onde o poder público não existe. É a lei do mais forte!

Tendo tal cenário como suporte, observamos, então, o amalgamar de conceitos e aspirações há muito existente no nosso ideário, que sempre estiveram presentes, num país partido e com os principais índices de desigualdade do mundo. A novidade é que, pela primeira vez na nossa história, eles tiveram a oportunidade de tomar vulto, se expressar politicamente. Os que se mantinham calados, resolveram falar. E o país, turbinado pelas Redes Sociais, virou uma Babel Opiniática. Realmente um fenômeno social, que merece um estudo mais aprofundado, e que para alguns estudiosos tomou o nome de Revolução dos Jagunços, que hoje se expressa por militantes do chamado bolsonarismo.

No filme,“ O Som ao Redor” o que vemos é o som do seu chegar.

O chegar de um segmento social, que se vê como injustiçado, pleno de mágoa, que está tentando a sua autonomia com um programa anti-sistema, baseado na crença milenarista de um Brasil Cristão Conservador, com a missão expressa de limpar a sociedade dos bandidos, eliminando-os fisicamente. Acreditam que estão numa revolução, são arautos de um novo tempo, onde irão banir do convívio social os diferentes, os liberais, os esquerdistas e todos os que lhes dão suporte. Como são milenaristas propõe o sofrimento para alcançarem a vida superior, que trará de volta à família perdida e a sociedade sólida que lhes garanta o futuro, ameaçado por bandidos que lhes querem tirar o emprego, Trata-se de uma visão de mundo que vai ao encontro de expressivos setores sociais.

É predominante entre os policiais, entre setores expressivos da área de justiça, como promotores e até mesmo juízes, segmentos subalternos e médios das forças armadas, pastores de igrejas e padres carismáticos, pequenos empresários e segmentos importantes da classe média rural. Provavelmente muitos de seus amigos partilham de todas ou algumas destas ideias. São ideias de exclusão, de racismo, de intolerância, de machismo, de aversão a política, de aplausos regimes de força, de militarização da vida, etc. Importante, é frisar que estes sentimentos sempre estiveram aí, somente agora, como nos versos de Clarisse Lispector que abrem este texto, tiveram as condições para marchar com outros. Eu e você é que nunca pensamos que eles ali estavam!

Como no filme, os setores populares, os debaixo da pirâmide social, não aparecem. São figuras sem rosto, na realidade do dia-a-dia: para eles não há protagonismo, pelo menos por enquanto. Não têm um programa próprio. Como há séculos, aguardam a vinda de um protetor — talvez um D. Sebastião. Na luta pela sobrevivência, assistem, perplexos, ao desenrolar deste processo, acuados entre o tráfico, as milícias e a polícia de um Estado distante e opressor. Há muito tempo este segmento abandonou a ideia de ascensão social. No íntimo, sabem que são descartáveis (homo saces) , no seio de uma sociedade que cada vez menos tem interesse em lhes absorver.

E nesse quadro, procuram somente sobreviver. No jogo político, são incapazes de colocar na mesa propostas programáticas concretas que levem à sua libertação. Estão amarrados a um sistema que, no momento, lhe nega a sobrevivência através do trabalho. Patinam, pois, num mar de mais de 50 milhões de desempregados. Acostumados a serem desprezados e oprimidos desde o início da formação do Brasil, somente perguntam: o que será pior? A continuidade da hegemonia dos coronéis ou a ascensão dos jagunços ao poder total?

Da nossa parte, sabemos que esta revolução em curso (na verdade, uma contrarrevolução) de caráter conservador tem o caminho de qualquer processo revolucionário: pode avançar ou sucumbir. Ela tem muitos obstáculos a vencer: afinal, este país não é para amadores, dizem os mais experientes! Os coronéis, que sempre estiveram no controle, irão ceder candidamente aos jagunços o poder total? Os liberais terão força para resistir? Os generais darão poder total ao capitão? .

Cabe a nós entendermos este movimento social, na sua complexidade. E não a tratar como um acidente histórico. Num quadro complexo como este, urge traçar um caminho independente que ponha em movimento as forças populares, acuadas pelo bolsonarismo. Ele movimenta pode mostrar um novo caminho que fuja da lógica dos coronéis e dos jagunços.

O filme do diretor Kleber Mendonça Filho não nos dá uma resposta. Ele nos deixa sem saber o verdadeiro final da história. Não sabemos se vence o coronel ou o jagunço.

Como estamos na realidade, não temos saída, além de viver a vida vivida. Somente neste processo poderemos decifrar este enigma e sair deste impasse!

Serra da Mantiqueira,
Arlindenor Pedro.
contato@utopiasposcapitalists.com

Arlindenor Pedro é ex-preso político e anistiado. É também professor de história, filosofia e sociologia, além de editor do blogue Utopias Pós-Capitalistas-Ensaios e Textos Libertários.

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