As manhãs de sábado se diferenciam do cotidiano e nos levam a uma região que, se tiver a devida atenção, pode ser um cartão postal da cidade.
Por Abraham B. Sicsú – de Brasília
Todo sábado, um destino. O Centro degradado o espera. Poucos sabem seu nome, todos o chamam de professor. Título que fez jus de receber após quase cinquenta anos de magistério superior. Suas manhãs sabatinas se dedicam à garimpagem.
Para resolver um problema crônico do Recife, foi criado em 1994. O Camelódromo era apresentado como a solução. Uma estrutura funcional e bem organizada para onde foram deslocados os ambulantes que inundavam a cidade. Apresentado como solução econômica de um grave problema social, cidade onde o desemprego campeia, onde o informal é meio quase principal para sobrevivência.
Trinta anos estão passando. O abandono é gritante. Estruturas se decompõem, o ferro dos pilares enferruja trazendo preocupações para a segurança. A antiga calçada de pedras portuguesas quase desaparece. Nesse cenário está a feira do troca-troca.
Camelódromo
Amontoados no chão. De tudo um pouco. Conexões hidráulicas, eletrônicos quebrados, ferramentas acabadas, tudo exposto na espera de um quem sabe comprador. Maltrapilhos e descuidados, pessoas marginalizadas da sociedade procuram sobrevivência. A prefeitura os esqueceu, ninguém limpa a área faz tempo, ninguém se preocupa em recuperar um espaço da cidade abandonado. Aí começa o Camelódromo.
Professor anda com desembaraço. Procura algo que possa comprar, que possa ajudar alguém. Os preços são irrisórios. Mesmo assim pechincha, mas sempre acaba pagando o preço pedido originalmente. Tão irrisório que não vale a pena negar. A barganha faz parte do divertimento.
Entrando no labirinto de pequenas lojinhas, pouco a pouco, o local parece mais estruturado. Professor traz encomendas de casa. Netos e parentes lhe pedem assessórios para celular, radinhos de pilha, pequenas miudezas que compra com prazer. Os preços se diferenciam em muito dos shoppings de classe média. Se tiver dúvida, o celular funciona. Liga para saber se é isso mesmo ou qual a cor preferida do objeto.
Sua obsessão são suas duas coleções. Óculos e relógios. Tem mais de 800 óculos muito bem guardados em gavetas e acondicionados. 450 só de Ray-Ban.
Relógios uma loucura. Possui mais de mil. Mais de 30 anos de colecionador, tendo de tudo, dos suíços mais sofisticados aos chineses não tão populares. Todos bem organizados. Raridades como um relógio que a França fez em homenagem a JK e dois de algibeira de 1922 em comemoração ao centenário da independência do Brasil, existem pouquíssimos, estão entre os seus preferidos. Muito bem guardados em quadros e gavetas que organiza.
O Camelódromo é sua base de fornecimento. Todos lá o conhecem e aguardam a visita. Sempre alguém oferece uma raridade. Nem sempre compra, afinal é servidor público o que lhe dá limites, mas sempre analisa e aponta seu parecer. “Guarde que mês que vem eu compro”. Mas, avisa, se aparecer alguém para comprar pode vender.
Os concertos lá mesmo são feitos. Seu Marcos relojoeiro o atende há décadas. Serviço bom, de qualidade. Nada lhe é impossível. Desde os sofisticados suíços, aos ching lings de pilha, consegue as peças, os deixa como se fossem os originais.
Vai se chegando à Praça do Carmo. Curiosidades surgem e chamam a atenção. Discos de vinil preciosos têm que ser garimpados, a cinco reais. Nelson Gonçalves, Bienvenido Granda, Jacob do Bandolim, Primórdios da Bossa Nova, Beatles em diferentes versões, entre milhares de “desgraças artísticas” podem ser encontrados. Se preferir, CDs têm em tulhas, a três reais cada, nada faltará.
A igreja e seus encantos. Gosto de entrar e ver. As cores me fascinam e a paz no meio da pobreza aparente que a cerca se faz presente.
Ao lado um prédio, temos que entrar. No segundo andar está Zé do Óculos. Lá se pode fazer o mais barato óculos da cidade com perfeição. Cinqüenta anos de profissão. Na sala ao lado compre uma bela armação por apenas R$ 80.
Conversa boa e animada
Zé, uma grande figura. Conversa boa e animada. Adora a Argentina sem nunca ter ido. Sua mãe gostava dos baixinhos jogadores como Maradona e adoraria atualmente Messi. Candidatou-se sem nunca ter conseguido mandato, mas se considera político. Professor, toda semana lhe encomenda dois ou três pares de lentes que faz com satisfação a custos bem abaixo das óticas da cidade.
Ao Mercado de São José. As ruas ficaram limpas com o deslocamento da feira. Bom lugar para compra de mantimentos e artesanato. Muita gente no sábado de manhã. Animados na busca de peixes, estatuetas e pequenos objetos de decoração.
O vuco-vuco da Rua das Calçadas e arredores. Vende-se de tudo. Procuramos embalagens plásticas para acondicionar os óculos. Lá tem de tudo. As casas de produtos naturais e suplementos alimentares, para físicos bem tratados, se proliferam. Roupas, frutas, ferramentas, eletrônicos esperam compradores sempre negociadores de preço.
Volta ao nosso Camelódromo. A hora do almoço já está passando. Professor tem seu Box preferido. Senta e nem precisa pedir. A galinha guisada, o feijão e o arroz, a salada, tudo bem feito acompanhado por um suco de abacaxi extremamente doce. Acompanho com um bife acebolado. Almoço que dá gosto, três horas de caminhada pelo Recife um pouco descuidado faz a fome aparecer.
Uma manhã que se diferencia do cotidiano e nos leva a uma região que, se tiver a devida atenção, pode ser um cartão postal da cidade. Igrejas, monumentos, comércio, gente, tudo lá, nossa identidade a ser resgatada.
Abraham B. Sicsú, é professor aposentado do Departamento de Engenharia de Produção da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e pesquisador aposentado da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco).
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