Tendo por base as comprovações de ineficácia dos tratamentos manicomiais, especialistas e profissionais do ramo debateram temas como internação compulsória, comunidades terapêuticas e o principal, o cuidado em liberdade, com garantia de direito à cidadania.
Por Redação, com ABr - de Brasília
A 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental recebeu em Brasília cerca de 2 mil profissionais para formular propostas para a Política Nacional de Saúde Mental.
Tendo por base as comprovações de ineficácia dos tratamentos manicomiais, especialistas e profissionais do ramo debateram temas como internação compulsória, comunidades terapêuticas e o principal, o cuidado em liberdade, com garantia de direito à cidadania.
A conferência teve início na segunda-feira, e segue até esta quinta-feira. A expectativa dos organizadores não é pequena, uma vez que o encontro não ocorre há 13 anos. Entre especialistas e usuários do Sistema Nacional de Saúde Mental, uma unanimidade é que os manicômios estão longe de representarem qualquer solução enquanto tratamento. Em contraposição, a absoluta maioria defende o chamado tratamento em liberdade.
– Manicômios eram depósitos punitivos de pessoas. Não havia cuidado ou respeito aos direitos daqueles que lá viviam. Já o tratamento em liberdade é o oposto. Entende que a loucura é tratável; que a pessoa (com transtornos mentais) pode ser acolhida e tem potencial e capacidade para trabalhar. É tudo uma questão de adaptação – explicou à Agência Brasil a coordenadora adjunta da conferência e integrante dos conselhos Nacional de Saúde e Federal de Psicologia, Marisa Helena Alves.
Psicóloga e professora universitária, Marisa explica que saúde mental é “o completo bem-estar”, e que isso envolve elementos como qualidade de vida, moradia, empregabilidade, bem-estar social, direitos e, principalmente, o cuidado em liberdade. “Neste caso, o ofertado pelo SUS (Sistema Único de Saúde)”, complementa.
É tendo em mente esses objetivos que ela e os demais participantes da conferência vão elaborar propostas para a Política Nacional de Saúde Mental.
– Estamos em um momento de retomar e reorganizar essa política, após anos de descaso e 13 anos sem conferência. O Departamento de Saúde Mental foi criado recentemente e ampliado sua atuação para aqueles que vivem situações com álcool e drogas – disse ao ressaltar que vários problemas e a piora na assistência às pessoas com transtornos mentais ficaram ainda mais expostos após a pandemia.
Desafios
Ela destaca a necessidade de o país melhorar os atendimentos nas redes e centros de Atenção Psicossocial; e de mais investimentos, inclusive para a criação de serviços, visando o atendimento local nas situações de crise.
Entre os desafios a serem enfrentados pela política a ser implementada está o de retirar “estigmas excludentes e o ranço histórico” que associam loucura a perigo. “No passado, essa associação não existia. Veja o caso dos bobos da corte. Eram doidos com acesso à sociedade. Com o passar do tempo, esse conceito e olhar sobre o louco mudou, associando a ele uma suposta periculosidade que, na verdade, abrange todos os grupos de pessoas. Essa associação perigosa é fruto de preconceito”, argumentou a professora universitária.
Ela explica que, no surto, qualquer pessoa diz o que pensa, e que isso afeta poder, governo e público. “Por ser algo incômodo, acabou resultando no afastamento entre loucos e sociedade”, acrescentou ao explicar que os manicômios foram então a solução encontrada para esse afastamento.
Liberdade e direitos
– Enquanto tratamento, os manicômios não têm nenhum benefício. Já os tratamentos em liberdade têm sido um sucesso, e por isso são o pilar da reforma psiquiátrica que queremos para o país. É uma forma de tratamento que garante respeito aos direitos do cidadão. Toda pessoa com transtorno mental é um cidadão de direito, e merece ser tratado como tal. Não se pode punir ninguém apenas por ter transtorno – defende ao alertar sobre o risco de novas versões de manicômios virem disfarçadas de comunidades terapêuticas.
Em tratamento psiquiátrico há 27 anos, a usuária do SUS Saúde Mental Helisleide Bomfim dos Santos, de 51 anos de idade, defende não apenas os cuidados em liberdade, mas também a regionalização do tratamento, com redes psicossociais locais para atendimentos emergenciais, de forma a evitar a necessidade de longos deslocamentos para pessoas que se encontrarem nessa situação.
– Manicômio não cura. Tortura – disse ao ressaltar a importância do autocuidado; do amor-próprio e da autoestima como elementos colaborativos para a eficiência dos tratamentos, desde que em liberdade.
No caso de Helisleide, que iniciou o tratamento após uma depressão pós-parto, uma atividade que em muito ajudou na superação das crises foi o teatro. “O teatro me ajuda e me fortalece. O prazer que ele me proporciona acaba por me ajudar, principalmente a me cuidar. A sensação que tenho é de que ele é o remédio que me faltava”, acrescentou ao enfatizar que, tendo cuidado, a vida de quem carrega essa patologia pode ser boa e repleta de conquistas.
– Eu viajo sozinha, faço teatro, tenho autonomia, sou empoderada, feminista e antiproibicionista, com relação ao uso de drogas enquanto ferramenta para redução de danos – disse, esclarecendo que danos podem estar relacionados a drogas ou a relações interpessoais. “No meu caso, faço uso de maconha por identificar nela um problema menor”, explicou.
Helisleide é técnica em enfermagem aposentada. A vivência profissional associada aos tratamentos feitos ao longo da vida deu a ela um olhar apurado sobre a situação não apenas dos pacientes, mas dos profissionais de saúde.
– Precisamos de políticas públicas voltadas tanto aos usuários do sistema como para os profissionais ligados a ele. Precisamos dar atenção especial aos profissionais da saúde, porque têm uma rotina complicada. Há um índice alto de profissionais, inclusive que trabalham com saúde mental, que acabam ficando mentalmente adoecidos – alerta ao defender que as propostas a serem elaboradas durante a conferência tenham também foco nesses profissionais.