Beyond Fordlândia (2017, 75min) está se fazendo notar entre os aficionados do cinema documental e aos expectadores que assistem ao documentário escrito, produzido e dirigido por Marcos Colón.
Por Marcus Luiz Barroso Barros e Marilene Corrêa da Silva Freitas - de Manaus
O resultado de três premiações sucessivas, em diferentes contextos nacionais e intelectuais, assim o expressam. O filme, que foi exibido em Manaus no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas — IGHA em agosto último, apresentado e premiado em Cabo Verde em setembro, premiado duas vezes em Barcelona, semana passada, foi exibido no Rio de Janeiro nesta terça-feira, véspera do feriado de 15 de Novembro. Aborda um conjunto de representações da Amazônia e de seu destino como territórios de utopias; aqui entendido como território de possibilidades, de desejos, de interesses.
É exatamente sobre esse aspecto utópico que a abordagem de Colón confere ao filme uma percepção simultaneamente inquietante e redentora. Criou-se a expectativa de que projetos econômicos e o desenvolvimento da Amazônia têm relação causal direta com a inovação tecnológica e científica. Criou-se uma dependência simbólica de que a restauração/recuperação de iniciativas econômicas assemelhadas ao enclave experimentado por Henry Ford na Amazônia, fracassadas à época, possam ser recuperadas com medidas mais exigentes de controle do Estado e governança da sociedade. Nada mais problemático. Nada mais ilusório. Nada mais perigoso; porque manipula alienação como verdade por meio de eficiente estratégia de envolvimento do imaginário coletivo.
O filme de Colón redimensiona o caráter técnico e inovador da experiência econômica de Henry Ford na floresta como uma intervenção devastadora e nada agregadora de bem estar ou riqueza material. De igual maneira, dissipa expectativas de milagres que a recorrência ao passado tende a valorizar; tal seja, a lembrança de experiências perversas ‘fetichizadas’ como extraordinárias. Capazes de criar prosperidade e riqueza material às suas populações desassistidas pelos governos e pelo Estado, e totalmente vulneráveis a qualquer apelo de inclusão social.
Agronegócio
Apartadas de uma abordagem compreensiva da cultura, os efeitos desses projetos econômicos geram impactos de longa duração. Mesmo quando em sua forma imediata recorram às intervenções tecnológica e científica, tais atividades logo se manifestam anacrônicas, despóticas. Ao sensibilizar diferentes públicos para a situação contemporânea dessa violência acumulada no tempo, o filme transforma o olhar indiferente em uma percepção critica de processos e métodos de atuar sobre a região que não estão aparentes; recobertos pelas árvores, esquecidos pela história.
Os modelos econômicos impostos não se extinguem nas dinâmicas de seu funcionamento imediato, concreto. São antecedidos por estruturas de desigualdade que lhes permitem os abusos de toda ordem. E são sucedidos e constituídos pela violência lenta que lhes permite atravessar ciclos de exploração contínua mesmo quando já fizeram cessar resultados economicamente verificáveis. Essa mesma violência que reitera crenças no desenvolvimento econômico que já se demonstrou inviável em seus efeitos sobre as relações natureza e cultura. Assim foi com os processos de acumulação originária das drogas do sertão e das plantações de tabaco e cacau; também foi com a subsequente economia da borracha.
A era do agronegócio já recebeu a Amazônia pronta para sua estratégia de uso predatório das terras, das gentes, dos biomas e ecossistemas. Na Amazônia, pode se dizer que todas as iniciativas de uso dos recursos naturais como produtos econômicos do mercantilismo deixaram ao capitalismo predatório a herança de uma dependência econômica de regiões e grupos humanos abandonados; populações deslocadas, territórios e povos desolados de suas práticas sociais e culturais originárias que têm ritmo próprio. Mostrar a Amazônia colapsada e fazer ressoar a voz dos sujeitos sobreviventes e resistentes é uma opção crítica reveladora das escolhas produzidas no filme.
Premiado
Na base destas decisões de expor a tragédia dos resultados da ação de Henry Ford na Amazônia esclarecem-se os sentidos de intervenções seculares sobre o uso da terra; da floresta e do homem pelo capitalismo. Com efeitos irreversíveis sobre as formas de adaptabilidade e sociabilidade. Índios, posseiros, agricultores, coletores, assalariados rurais, populações expostas à violência lenta são reconhecidos no filme e mostrados ao Brasil e ao mundo neste documentário.
Belas imagens, depoimentos contundentes. As condições sociais precárias impactam todos os níveis de existência de grupos e coletividades mobilizadas pelos projetos econômicos de duvidosa efetividade. Nem progresso material nem cidadania; além da formalidade. A precariedade e a vulnerabilidade da situação social das populações amazônicas preparam a disponibilidade de seu uso para a expansão da soja; e de outros arranjos produtivos na cadeia do agronegócio. E Beyond Fordlândia ilustra os nexos entre a exploração do passado e do presente; viabilizados pela violência material e simbólica contínua, inexorável.
A quem fala o filme de Marcos Colón e a que se deve essa bem sucedida recepção do Beyond Fordlândia em Manaus, Belém, Altamira, Barcelona, Cabo Verde; o que nos leva a supor que igual resultado se dê proximamente no Rio de Janeiro e Munique? O filme já foi premiado na 8ª Edição do Festival Internacional de Cabo Verde, melhor documentário longa metragem, e na 24º Edição do Festival Internacional de Cinema e Meio Ambiente em Barcelona como melhor Documentário de Sensibilização por sua natureza educativa.
Olhar de suspeita
Semelhanças em públicos e júris de países diferentes têm em comum a compreensão critica de contextos de experiências evocadas dos processos coloniais do passado; e dos resíduos de dominação implantados nas dinâmicas de todos os lugares vitimados pela colonização no presente. Marcos Colón produz artisticamente esse amálgama; que tem interdependências simbólicas e empíricas.
Assim, se o imaginário da Europa sobre a Amazônia retém imagens de uma natureza exuberante; impenetrável e intocada do passado, visto por viajantes e naturalistas europeus, o filme demonstra a exposição e vulnerabilidade da região aos modelos de exploração econômica dos acontecimentos de posse e conquista da Amazônia pela própria Europa; com a violência física e cultural dos desencontros do Velho Mundo com a América. De igual maneira, faz uma inflexão sobre a mundialização do capitalismo e de como espaços nacionais são apresentados e disponibilizados ao desenvolvimento de experimentos produtivos ou especulativos de arranjos econômicos locais.
A dimensão cartográfica do Beyond Fordlândia não deixa dúvida sobre o impacto da invasão; e da submissão de terras e gentes aos vencedores. Deixa claro que também na lógica da subalternidade a que a região foi vencida se inscrevem decisões nacionais do Brasil. O filme pode ser, deste modo, uma categoria explicativa de várias situações assemelhadas no mundo, ontem e hoje. E permite lançar um olhar de suspeita sobre as formas contemporâneas de os conquistadores do presente deixar expostas as suas ligações com passado.
Sociedades amazônicas
Os diferentes júris e públicos têm registrado percepções complementares que articulam leituras e informações sobre a Amazônia e aduzem esclarecimento às representações da região como território de utopias de todas as ordens. Sublinhe-se, entre as demais percepções que o filme amplia, a expectativa de futuro nada promissor para a região amazônica. As esperanças são palidamente vislumbradas no discurso de índios e trabalhadores; processos de continuidade da condição social de populações receptoras da intervenção de Henry Ford, em Fordlândia de 1927; nos grupos e coletividades apresentadas no filme em 2017, o que torna mais agudo o sofrimento; o impacto, e os efeitos negativos sobre dimensões sociais, culturais, humanas e ambientais na Amazônia.
Beyond Fordlândia pode se tornar um paradigma para o exame de outras incursões da economia no meio ambiente. E uma referência importante para pensar e atuar nas relações sociedade e cultura em qualquer lugar. Está em causa o que os sujeitos da ação humana investidos de poder fazem com a própria humanidade; em prejuízo de todos. É contra essas investidas que o filme apela contra a indiferença dos homens que ameaçam outros homens.
O atentado da experiência de Henry Ford sobre a Amazônia é mais nítido quando o filme ilustra as perdas das formas de culturas de sobrevivência locais; dos laços de solidariedade indígena e comunitária. E sublinha a nostalgia de perdas identitárias que; mais uma vez, ilustram que a violência continua em todos os espaços e tempos das sociedades amazônicas.