Rio de Janeiro, 20 de Dezembro de 2025

Paulinho da Viola, Dilma e um amor no Recife

Por Urariano Mota - ‘Então houve 'Para um amor no Recife'. Diziam então que Paulinho fizera essa música para a secretária de Dom Hélder Câmara. As boas e as más línguas (principalmente) acrescentavam que a dedicada senhora vinha a ser a namorada secreta do arcebispo. Entre o sussurro e a maledicência, entre a repressão da ditadura Médici e a resistência serena erguia-se um poema belo, quase autônomo da melodia: A razão por que mando um sorriso e não corro, é que andei levando a vida quase morto. Quero fechar a ferida, quero estancar o sangue, e sepultar bem longe o que restou da camisa colorida que cobria minha dor. Meu amor, eu não esqueço, não se esqueça, por favor, que voltarei depressa, tão logo acabe a noite, tão logo este tempo passe, para beijar você . Essa é uma canção que só fez melhorar ao longo de todos esses anos. A ditadura não existe mais, o seu motivo imediato não mais existe, mas a composição só vem crescendo, apesar da degradação do Recife, que entra quase incidentalmente no título’ ”.

Segunda, 05 de Janeiro de 2015 às 14:16, por: CdB
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Urariano Mota conta um diálogo no Facebook com a neta de um falecido intelectual comunista Paulinho da Viola, Dilma e a música na história brasileira
No relato a seguir não há qualquer ficção. Qualquer semelhança com pessoa viva ou conhecida não é mera coincidência. Tudo se passou na página do Facebook da neta de um comunista histórico. Ele, um  militante já falecido, não tem culpa. E por esse motivo deixo de informar o seu nome, e o da neta, em atenção à memória de um intelectual que honra até hoje o Recife. Era 29 de dezembro do ano que passou há uma semana. Nessa época, ao se aproximar o dia 31, todos ficamos de repente sentimentais, porque tendemos a ver no fim do calendário a marca do fim de um tempo também em nossas vidas. Daí que a neta se lembrou de Paulinho da Viola, daquela bela canção “Para um amor no Recife”, a cidade  mui amada do avô. Daí que eu, em pura e ingênua consciência, uni os dados que se jogavam no Face: post de uma amiga descendente de comunista, composição belíssima de Paulinho, mais a posse da ex-presa política na presidência do Brasil. Então postei nos comentários: “A propósito, copio do texto ‘A presidenta Dilma, Paulinho da Viola e os brasileiros’, http://blogdaboitempo.com.br/.../a-presidenta-dilma.../ : ‘Então houve 'Para um amor no Recife'. Diziam então que Paulinho fizera essa música para a secretária de Dom Hélder Câmara. As boas e as más línguas (principalmente) acrescentavam que a dedicada senhora vinha a ser a namorada secreta do arcebispo. Entre o sussurro e a maledicência, entre a repressão da ditadura Médici e a resistência serena erguia-se um poema belo, quase autônomo da melodia: A razão por que mando um sorriso e não corro, é que andei levando a vida quase morto. Quero fechar a ferida, quero estancar o sangue, e sepultar bem longe o que restou da camisa colorida que cobria minha dor. Meu amor, eu não esqueço, não se esqueça, por favor, que voltarei depressa, tão logo acabe a noite, tão logo este tempo passe, para beijar você . Essa é uma canção que só fez melhorar ao longo de todos esses anos. A ditadura não existe mais, o seu motivo imediato não mais existe, mas a composição só vem crescendo, apesar da degradação do Recife, que entra quase incidentalmente no título’ ”. Meus amigos e meus inimigos, a realidade não suporta nem apoia a consciência pura, mais conhecida pelo nome de consciência burra . Eis o que recebi de volta da senhora neta: “Céus, mas onde é que você foi enfiar o pobre Paulinho?” Ao que eu, com um leve pé atrás, respondo: “Em lugar muito próprio: na resistência contra a ditadura”. E a esta altura recebo o comentário mais claro da netinha: “Um lugar que não é eterno, como se nota hoje. Logo ela, que apoia outras ditaduras...”. Olhem, a patada era tão imprevisível, que li e não vi – aquele reflexo em que vemos e nos negamos a ver, porque não acreditamos no que os olhos mostram – e apenas aceitei a primeira parte da frase “Um lugar que não é eterno”. E respondi logo, no automático: “Longa é a arte”. Ao que, depois de me dar conta da frase inteira, completei: “Me surpreende muito este seu comentário: ‘Dilma apoia outras ditaduras’.” E a senhora neta, à beira da raiva, mas ainda  conservando as aparências: “Não sei por que o surpreende. Mas o fato é que postei uma música linda que nada diz respeito a Dilma. E ponto”. Então fomos à definição dos termos, e postei: “Eu relacionei o post com a ditadura, - tem a ver, não? - e com a presa política Dilma, que acalmava as companheiras torturadas com essa música de Paulinho. Alguma reação a esses fatos históricos e humanos?”. Então a neta biológica se fez mais pura e somente herança de sangue: “Vou pedir sua licença para apagar todos esses comentários. Afinal, o post é meu e me dou o direito - com razão, a meu ver - de não suportar Dilma. Será só o tempo de lê-lo que tiro todos. O fato de ter sido presa política não é um título honorífico, muito menos vitalício - vide Zé Dirceu e seus cúmplices”. É claro que nos limites de um post não cabia a discussão que mostrasse uma justiça política, de réus condenados antes do julgamento, em um processo  que a mídia chamou de “mensalão”, fenômeno batizado assim por um corrupto dos mais canalhas da República. E talvez até coubessem algumas linhas, se os genes irados não exibissem o nível em que se encontram, quando chamam de ditadura a Venezuela, Cuba e outros países do “eixo do mal”.  A neta do comunista histórico do Recife não era a pessoa que a consciência burra pensava que fosse. Então comentei por fim: “Não se aperreie não. Eu pensei que a neta herdasse também o espírito socialista do avô. Fui, e pelo visto, já vou tarde”. O verbo “aperrear” acima foi escrito como uma senha de pernambucano, de nordestino, para alguém cosmopolita. (Vocês nem imaginam que haja recifenses longe da terra que se desejam de outros mundos.) O fato é que rompemos uma amizade que nunca havia existido. E tudo a partir da música de Paulinho e do elogio para a presidenta Dilma. Sei que isso contado parece absurdo, incrível, mas foi assim. Contei o caso como caso foi.
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SOBRE ESSE MESMO TEMA, LEIA COLUNA PUBLICADA POR URARIANO MOTA EM JANEIRO DE 2012, NO BLOG BOITEMPO A presidenta Dilma, Paulinho da Viola e os brasileiros Publicado originamente no blog do Boitempo, em 17/01/2012 | Por Urariano Mota. Um dia desses notei que a história política do Brasil poderia ser contada pela história da sua música popular. E como sempre acontece em qualquer descoberta, essa conclusão geral me chegou pela insistência, persistência e resistência de alguns casos particulares, individuais, que traziam em si o dom universal e reclamavam lugar. Assim foi, por exemplo, em páginas de Soledad no Recife, quando a ressurreição dos malditos anos da ditadura se fez sob a canção dos tropicalistas. Assim foi quando escrevi sobre Geraldo Vandré, sobre Chico Buarque, sobre Roberto Carlos… assim tem sido em textos mais ambiciosos, escritos sob a música íntima que me acompanha ao narrar o mundo submerso da infância. Que nos acompanha a todos quando recuperamos vidas, melhor dizendo. Escrevo isso agora a partir de uma revelação do livro A vida quer é coragem, de Ricardo Batista, conforme artigo de Alberto Villas: “…a uruguaia Maria Cristina Uslendi conta que em outubro de 1971, toda vez que voltava das sessões de tortura encontrava Dilma de braços abertos ‘me amparando, me ajudando a usar a latrina quando não tinha forças, me dando sopinhas de colher na boca, me cedendo a parte de baixo do beliche e pondo na vitrolinha de pilhas as melhores músicas da MPB’. Cristina conta que Dilma sempre pedia a ela que prestasse muita atenção à letra de ‘Para um amor no Recife’, uma canção de Paulinho.” O quanto isso é verdadeiro. O quanto a música popular foi remédio, cura e perdição da maioria dos brasileiros que estiveram contra a ditadura. O quanto devemos a esses artistas da canção, numa dívida que eles próprios não alcançam o tamanho, mas que é, ao mesmo tempo, motivo de sufoco e prisão para eles, em razão do papel que ganharam à sua revelia. No entanto, importa mais aqui, para não me distanciar do objeto destas linhas, falar alguma coisa sobre o Paulinho da Viola daqueles anos. Assim vamos agora. Quando “Foi um rio que passou em minha vida” apareceu no Brasil, éramos estudantes numa sexta-feira à noite, numa serenata em Maria Farinha. Achávamos então que a revolução socialista seria a coisa mais natural do mundo. E por ser assim tão natural, nada demais também que ouvíssemos, não se espantem, 41 vezes seguidas, contínua e incansavelmente foi um rio, foi um rio, foi um rio em uma vitrolinha de pilha. Naquele ano, e por que não ainda?, todos nós éramos Paulinho, nessa estranha empatia, mistura de identidades que a verdadeira arte produz. Todos nós repetíamos, e repetimos e repetimos… que “meu coração tem mania de amor, e amor não é fácil de achar”. À maneira de cantar, gritávamos esses versos então. Depois, morando na Pensão Princesa Isabel, no centro do Recife, Paulinho era Simplesmente Maria. “Na cidade, é a vida cheia de surpresa, é a ida e a vinda, simplesmente, Maria, Maria, teu filho está sorrindo, faz dele a tua ida, teu consolo e teu destino, Maria…” Nesse tempo, sempre compreendíamos o “faz dele a tua ida” como um “faz dele a tua ira”. Enquanto subíamos a escada para um quartinho isolado no alto, da televisão da sala vinha a música, tema de uma novela. Ela nos lembrava sempre que estávamos sozinhos e sem mãe, cujo nome também era Maria. À hora dessa música sempre esperávamos algum golpe traiçoeiro da polícia que queria nos matar. Sem Maria que nos velasse. Então houve “Para um amor no Recife”. Diziam então que Paulinho fizera essa música para a secretária de Dom Hélder Câmara. As boas e as más línguas (principalmente) acrescentavam que a dedicada senhora vinha a ser a namorada secreta do arcebispo. Entre o sussurro e a maledicência, entre a repressão da ditadura Médici e a resistência serena erguia-se um poema belo, quase autônomo da melodia: “A razão por que mando um sorriso e não corro, é que andei levando a vida quase morto. Quero fechar a ferida, quero estancar o sangue, e sepultar bem longe o que restou da camisa colorida que cobria minha dor. Meu amor, eu não esqueço, não se esqueça, por favor, que voltarei depressa, tão logo acabe a noite, tão logo este tempo passe, para beijar você ”. Esta é uma canção que só fez melhorar ao longo de todos esses anos. A ditadura não existe mais, o seu motivo imediato não mais existe, mas a composição só vem crescendo, apesar da degradação do Recife, que entra quase incidentalmente no título. Que sorte imensa a nossa de ter sobrevivido aos piores temporais para viver estes anos na maturidade! O que Paulinho anunciava num Samba Curto, “só me resta seguir rumo ao futuro, certo do meu coração mais puro”, agora vem chegando, agora atinge o seu tempo. Menos puro que o esperado, como é bom esse coração amadurecido pelo crisol, pela lembrança de quando o tínhamos somente dor. O que podemos fazer quando as águias piscam à civilização desse moleque bamba? Tentar, tentar compreendê-lo em uma crônica curta. Enfim, amigos, que estranho e magnífico poder tem a obra de arte. Quarenta e um anos depois, Paulinho da Viola, Dilma e os brasileiros voltamos a “Para um amor no Recife”. Para ouvir Para um amor no Recife e outras composições de Paulinho Viola, clicar em http://letras.mus.br/paulinho-da-viola/128178/ Urariano Motaescritor e jornalista. Autor do romance Soledad no Recife, sobre o assassinato pela ditadura brasileira da militante paraguaia Soledad Barret, grávida, depois de traída e denunciada por seu próprio amante o Cabo Anselmo. Escreveu também O filho renegado de Deus e seu livro mais recente é o Dicionário Amoroso do Recife. Seu primeiro livro foi Os Corações Futuristas, um romance na época do ditador Garrastazu Médici. Na juventude publicou artigos, contos e crônicas nos jornais Movimento e Opinião. Direto da Redação é um fórum de debates, do qual participam jornalistas de opiniões diferentes, dentro do espírito de democracia plural, editado, sem censura, pelo jornalista Rui Martins
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