Católicos e de outras religões, assim como ateus, comemoraram ontem o centenário de nascimento daquele que, no cargo de Cardeal Arcebisbo de São Paulo, na época da Ditadura militar, soube enfrentar os militares e interceder em favor dos perseguidos sem perguntar se eram ou não católicos. Celso Lungaretti, um dos muitos presos e torturados pela Ditadura (que hoje Bolsonaro e seus seguidores nazifascistas elogiam) relembra a figura de Dom Paulo Evaristo Arns e resume uma entrevista feita com Dom Paulo há 18 anos.
Por Celso Lungaretti
Para nós revolucionários que prezamos os direitos humanos, dom Paulo Evaristo Arns, cujo centenário de nascimento se comemorou ontem (14/09) foi um dos imprescindíveis a que se referiu Brecht.
Neste Brasil de ganância exacerbada e competição insana que o capitalismo globalizado engendrou, é fundamental, até para servir de antídoto, respeitarmos e exaltarmos exemplos como o que ele deixou.
Quando o entrevistei longamente em 2003, dom Paulo já era um homem combalido, que caminhava com dificuldade e tinha problemas de audição — decorrentes, esclareceu-me, de ferimentos sofridos quando de uma tentativa de sequestro num país latino-americano (pretendiam obter, em troca, a liberdade de um chefão do narcotráfico).
Tal entrevista permanece bem atual, daí eu estar reproduzindo aqui seus principais trechos, sem alterações na forma como então a redigi. Não quis privar os leitores da oportunidade de conhecer-lhe a história a partir de suas próprias palavras, que tive o privilégio de escutar numa ensolarada tarde de dia útil, no convento franciscano que fica ao lado da tradicional Faculdade de Direito do largo São Francisco.
No final, apesar de sua dificuldade de locomoção, fez questão de percorrer comigo o longo caminho até a saída. E se despediu com uma frase marcante: "Precisamos contar essas histórias [do que aconteceu neste país durante a ditadura militar] às novas gerações. É importante que elas saibam de tudo isso!"
A MISSÃO DO EDUCADOR
Muitos programas pioneiros, na linha da inserção social, foram introduzidos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo entre novembro/1970 e maio/1998, período em que, como arcebispo metropolitano de São Paulo, dom Paulo foi Grão Chanceler da instituição.
Logo que se tornou o principal responsável pelos rumos desta universidade, dom Paulo fez a primeira visita ao Conselho da PUC. E disse:
"Não quero uma escola de 2º grau melhorada. O que me interessa é que vocês façam uma pós que dê bons professores para todos os lugares do Brasil; e que todas as teses e tudo o que vocês discutirem além da escola se refira ao povo e ajude o povo. Que isso seja a norma daqui para a frente".
Os resultados não tardaram, diz dom Paulo. "A Arquidiocese se organizou em pastorais diferentes – p. ex., a Operária, a da Terra, a do Trabalhador –, então eu consegui que a Faculdade de Direito se interessasse em ir, durante a semana ou no sábado, à periferia e ver como se poderia ajudar essa população e quais os problemas reais da periferia. A mesma coisa aconteceu com a assistência social, que, aliás, está trabalhando nessa linha até hoje, com métodos sempre novos e recebendo apoio da Europa e de outros lugares, com uma eficiência muito grande."
Hoje, essas iniciativas pioneiras da PUC/SP encontraram muitos seguidores e há um sem-número de empresas e instituições esforçando-se para dar uma contribuição positiva à sociedade.
OFÍCIOS PARA VÍTIMAS DA DITADURA
"Os estudantes da USP me procuraram em 1973 quando um colega [Alexandre Vannucchi Leme] foi assassinado pelos órgãos de segurança. Os estudantes se reuniram, uns 10 mil, e mandaram representantes à minha casa, à noite, para que eu fosse lá falar aos alunos.
"Eu disse que era melhor reunir os estudantes, mas não dava para fazer no campus da universidade, porque ele estava cercado por policiais e oficiais do Exército.
"Então, decidi fazer na catedral. Eu disse: 'Na catedral, nós falamos o que queremos, e nós falaremos aos estudantes. Encham a catedral de estudantes e de povo, que nós diremos a verdade'. E foi o que eles fizeram. Às 15h, eu fui lá, fiz aquele ato solene em favor do estudante e celebrei a missa para o falecido. Fiz o sermão sobre o não matarás!, o mandamento central dos 10 mandamentos. Foi sobre isso que eu falei para eles, e eles participaram, vivamente, da missa e de toda manifestação religiosa posterior.
"Depois, em 75, foi a vez do Herzog; em 76, a do Manuel Fiel Filho; e em 79, a do Santo Dias, quando recebemos de 150 mil a 200 mil pessoas, que andaram desde a igreja de Nossa Sra. da Consolação. A multidão foi engrossando. Ao chegar na Catedral da Sé, não cabia nem na igreja nem na praça, então nós fizemos uma cerimônia mais curta, mas muito mais participada por todos os operários."
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"Quando o Herzog foi assassinado – lembra D. Paulo –, em 1975, os jornalistas me pediram que houvesse um ato ecumênico na catedral. Os judeus fazendo o ato deles em hebraico, portanto, não na língua que compreendêssemos. Foi impressionante e muito bonito."
Modesto, D. Paulo evitou comentar que sua decisão foi um ato de enorme coragem. Primeiramente, porque a alta hierarquia católica não viu com simpatia sua iniciativa de oficiar missa ao lado de um rabino e de um reverendo.
Depois, por ser um desafio frontal ao regime militar, que o ditador Geisel engoliu, pedindo apenas a D. Paulo que segurasse seus radicais, “enquanto eu seguro os meus”.
Finalmente, por ter, em nome de ideal de justiça e solidariedade cristãs, corrido o risco da ocorrência de tumultos e mortes que teriam um peso devastador em sua consciência de religioso.
Graças a ele, foi viabilizado o ato que acabou se tornando um divisor de águas: a partir desta vitória sobre a intimidação, a ditadura começou sua lenta, mas irreversível, marcha para o fim.
INVASÃO DA PUC EM 1977
"Eu estava em Roma quando o Erasmo Dias, então secretário da Segurança do Estado de São Paulo, invadiu a PUC sem dizer ou ter motivo nenhum. Os estudantes estavam em exame e os policiais destruíram mais de 2 mil cópias de documentos, estragaram o refeitório, danificaram os instrumentos musicais e até derrubaram um professor no chão.
"Fui chamado às pressas de Roma e, na manhã seguinte, já dei uma declaração ao desembarcar no aeroporto, dizendo que 'na PUC só se entra prestando exame vestibular, e só se entra na PUC para ajudar o povo e não para destruir as coisas'. Depois, nós fizemos toda uma reação contra eles e toda uma manifestação junto aos estudantes."
ELEIÇÃO DIRETA PARA REITOR DA PUC
"Antes eu reunia o conselho de cada classe, para ter uma certa democracia entre os professores, e pedia que me indicassem o nome. Achei que era pouca democracia. Então, pedi à reitora e aos três vices para haver uma escolha entre todos os alunos, que eu aceitaria o resultado e mandaria para a aprovação de Roma.
"E Roma aprovou imediatamente. Então, foi a primeira eleição dentro de uma universidade pontifícia católica e, também, foi a primeira vez que se escolheu um reitor entre todos os funcionários, alunos e professores."
"O ministro da Justiça ordenou a expulsão de vários professores da Universidade de São Paulo. Então a reitora da PUC me telefonou perguntando se podia admiti-los entre nós. Eu disse: 'Não só pode como deve, porque são excelentes professores e patriotas'.
"O Florestan Fernandes até escreveu um artigo me agradecendo. Ele ficou satisfeito porque pôde dirigir os estudantes da pós-graduação na PUC da maneira mais livre possível.
Paulo Freire |
"De fato a polícia o prendeu, mas, depois de duas horas de interrogatório, eles viram que todos estavam contra eles e soltaram o Paulo Freire, que ficou conosco, com uma grande amizade comigo, até o momento da sua partida."
CONVICÇÕES E ESPERANÇAS
Sobre o Governo Lula, antes mesmo da crise do mensalão, D. Paulo já mostrava uma ponta de apreensão, ao se dizer esperançoso de que "o Brasil não perca esta ocasião e não afunde o barco em vez de conduzi-lo a uma margem da terra onde haja outra terra e outro céu, como diria a Sagrada Escritura; onde haja outra possibilidade de sonhar e outra possibilidade de viver com dignidade, mas para todas as pessoas e não só para uma parte".
"A Igreja é o povo. Se o povo se mobiliza bem, a Igreja também se mobiliza. Então, é preciso unir esses dois conceitos, o povo de Deus e o povo, simplesmente. Nós precisamos caminhar para a fraternidade, para uma possibilidade de todos serem respeitados como filhos de Deus e irmãos uns dos outros".
EPÍLOGO
Não há como retratarmos a grandeza de um D. Paulo Evaristo Arns numa única entrevista. Faltou dizer, por exemplo, que ele criou a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo e foi o grande artífice do projeto Brasil: Nunca Mais (livro sobre as violações de direitos humanos durante o regime militar), integrando também o movimento Tortura Nunca Mais, dele decorrente.
O principal, no entanto, é que suas gestões junto às autoridades salvaram a vida e evitaram a tortura de resistentes, no pior momento da ditadura.
Fiel ao espírito da igreja das catacumbas, foi o pastor que tudo fez para que seu rebanho sobrevivesse a um tempo de lobos. Um imprescindível, enfim.
(Por Celso Lungaretti, jornalista, militante contra a Ditadura militar, preso e torturado, continua militando contra toda nova ameaça de ditadura. Editor do blog engajado Náufrago da Utopia)
Direto da Redaçao é um fórum de debates publicado no Correio do Brasil pelo jornalista Rui Martins.