Por Gladstone B. Alves, de Belo Horizonte:
O autismo tem sido definido, na prática e na maior parte das vezes, pela associação com um conjunto de comportamentos específicos e que são mais facilmente percebidos por um observador externo com treinamento para identificá-los e analisá-los. Isso inclui psiquiatras, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e psicólogos (em particular analistas do comportamento), entre outros.
Com base nos comportamentos visíveis, esses profissionais podem não apenas diagnosticar o indivíduo com um Transtorno do Espectro Autista (TEA) como também planejar intervenções terapêuticas com o objetivo declarado de “reduzir as potenciais dificuldades que esse indivíduo enfrentaria para funcionar em nosso mundo moderno”.
No entanto, ainda que em diversas circunstâncias isso seja o melhor que pode ser feito, tal abordagem tem suas limitações. Uma das consequências (não intencionais) desse foco nos comportamentos visíveis é a tendência, observada entre alguns pais e em setores mais amplos da sociedade, de associar ou mesmo equacionar “autismo” a “comportamentos inadequados”. Comportamentos que causam incômodo a terceiros, ou que são considerados inconvenientes aos contextos (típicos) em que se manifestam, são os primeiros a serem notados e a impulsionar pais a buscarem auxílio profissional.
Desse modo, uma parte das intervenções terapêuticas para autistas se volta à tentativa de suprimir ou “suavizar” comportamentos inconvenientes. É importante notar que muitos autistas recorrem a esses comportamentos como forma de amenizar a tensão gerada pela exposição a contextos para os quais não estão preparados (que os submetem a uma carga sensorial que, embora típica, é muito superior às suas capacidades).
Fica bastante claro, portanto, que a supressão do comportamento em si, desacompanhada de qualquer análise e medidas para aliviar o sofrimento do indivíduo e ajudá-lo a gerenciar a sobrecarga sensorial (incluindo a possibilidade de evitar a exposição àqueles contextos e a oferta de “acomodações” diferenciadas), não beneficiaria o autista em nenhum aspecto, mas apenas eliminaria o incômodo de terceiros.
Ressalta-se que indivíduos não autistas e saudáveis também recorrem à um espectro amplo e diversificado de atividades e comportamentos com o objetivo de reduzir o estresse da vida diária, conforme suas necessidades e formas típicas de alívio. Nem por isso, no entanto, sugere-se a eles a busca de auxílio profissional para suprimir essas necessidades e atividades.
Crianças autistas, assim como quaisquer outras, precisam de instrução e auxílio para lidar com o mundo. Elas serão particularmente beneficiadas se esse auxílio tiver como objetivo principal facilitar a realização do potencial do indivíduo, e o efeito contrário se ela for apenas uma tentativa de criar uma identidade totalmente avessa à natureza e neurologia do autista.
Assim como em pessoas não autistas, a variação de comportamentos entre indivíduos autistas é muito grande. Há autistas que toleram pouco o contato físico com outras pessoas e outros que, ainda que possuindo grande semelhança com os primeiros, são estimulados e aliviados sensorialmente por esse tipo de contato. Sob tensão, quando submetidos ao medo, dor ou ameaças, vários autistas aquietam-se, procuram se isolar ou mesmo ficam “paralisados”, enquanto outros têm reações mais expansivas e reveladoras de seus estados emocionais.
Eu, por exemplo, estou muito mais próximo do primeiro grupo do que do segundo e era particularmente assim na infância. Esse cenário era – e talvez ainda seja - popularmente representado como “bom comportamento”. No contexto da pessoa autista, ser uma criança “bem comportada” pode parecer uma opção positiva a princípio, para as pessoas de seu entorno (ao evitar o incômodo e outras inconveniências), mas em geral é ruim para o próprio indivíduo, que no limite pode não receber um diagnóstico e ter suas necessidades atípicas ignoradas.
Assim como não autistas, todo autista recorre ou exibe comportamentos cujo objetivo primordial é o alívio de suas tensões internas. Tomemos, como exemplo, dois grupos de autistas com dificuldades e necessidades mais ou menos próximas, mas que exibem comportamentos tidos como distintos. Para alguns deles, o primeiro grupo, os comportamentos serão mais comedidos, sutis, ou mesmo completamente “internos”, o que, combinado com a dificuldade natural de entender e expressar seus estados emocionais, pode levá-los a viver uma vida de “autista escondido”, um habitué de consultórios psiquiátricos, diagnosticado e medicado para uma série de transtornos mentais antes de descobrir-se autista (caso tenha sorte).
Já para os autistas no segundo grupo, as dificuldades e necessidades serão refletidas desde cedo em comportamentos mais exacerbados, que pais e profissionais não conseguirão ignorar. Isso não significa, porém, que os indivíduos nos dois grupos de autistas podem ser vistos como fundamentalmente diferentes uns dos outros, já que, apesar das diferenças nas formas com que suas naturezas são refletidas em seus comportamentos observáveis, suas dificuldades e necessidades seriam aproximadamente as mesmas.
Cada autista experimenta o mundo e seu autismo de forma muito particular e íntima. Até hoje descubro que algum comportamento ou forma de pensar, presente e identificável (por mim) como tal desde a minha adolescência, poderia estar relacionado ao perfil cognitivo de um autista. Devemos evitar julgar os outras exclusivamente a partir de nossas próprias perspectivas pessoais ou daquelas que se percebe como convencionais (por serem mais compartilhadas entre as pessoas).
O fato de uma coisa afetar ou não afetar uma pessoa ou a maioria das pessoas – ou absolutamente todas as pessoas que você conhece –, ou mesmo que você não consiga nem conceber como alguém pode ser afetado, não significa que outras pessoas não possam ser intensamente afetadas. Nesse ponto, não deixa de ser curioso notar que são os autistas os acusados de não possuírem uma “teoria da mente”, de serem incapazes de entender perspectivas alheias e de desenvolverem empatia cognitiva.
Gladstone Barbosa Alves, mestre em Engenharia Elétrica pela UFMG, atualmente trabalha na execução de projetos de Pesquisa & Desenvolvimento para empresas do setor elétrico brasileiro. Tem 38 anos de idade, é pai de um casal de crianças autistas e ele mesmo diagnosticado com autismo. É vice-presidente do Instituto Superação, uma organização sem fins lucrativos baseada em Belo Horizonte que trabalha com a promoção de políticas públicas voltados para indivíduos autistas.
Direto da Redaçãoé um fórum de debates editado pelo jornalistaRui Martins.
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