Por Maria Lúcia Dahl - Nasci durante a 2ª a Guerra Mundial, fazendo, definitivamente, parte da geração Coca-Cola, que tomava quase como mamadeira, vinda da Confeitaria Imperial perto de onde eu morava numa espécie de chácara, em Botafogo, com muitas árvores, gramado, horta e galinheiro, além das cobras, das quais lembro de uma que se enrolou no tronco da bananeira e era tão grande que meu pai teve que matá-la com um revólver. Revólver este que se escondia no armário e que também foi usado uma vez pra espantar o cachorro policial que queria morder um ladrão de galinhas, fazendo-o subir na mangueira e gritar por socorro, acordando mamãe, que ficou com pena do rapaz.
Domingo, 02 de Novembro de 2014 às 13:00, por: CdB
Atriz e escritora, Maria Lúcia Dahl estréia como colunista convidada para nos contar sua rica existência
Nasci durante a 2ª a Guerra Mundial, fazendo, definitivamente, parte da geração Coca-Cola, que tomava quase como mamadeira, vinda da Confeitaria Imperial perto de onde eu morava numa espécie de chácara, em Botafogo, com muitas árvores, gramado, horta e galinheiro, além das cobras, das quais lembro de uma que se enrolou no tronco da bananeira e era tão grande que meu pai teve que matá-la com um revólver. Revólver este que se escondia no armário e que também foi usado uma vez pra espantar o cachorro policial que queria morder um ladrão de galinhas, fazendo-o subir na mangueira e gritar por socorro, acordando mamãe, que ficou com pena do rapaz.
Além desses contratempos, a casa também metia um pouco de medo com seus grandes espaços, como o vão escuro debaixo da escada de madeira preta, cheio de fantasmas que freqüentavam a minha fantasia infantil.
Apesar do amor imenso que eu sentia pela minha primeira casa, bom mesmo eram as férias em Quitandinha, onde só se ouvia, às noites, o som alegre dos bailes de Carnaval dos adultos ou as festas infantis, nas quais eu ia vestida de tirolês, cantar o Pirata da Perna de Pau. Quitandinha é um sonho que permanece intacto, com seu hall de entrada de mármore cheirando a lança-perfume, casacos de lã e artistas de Hollywood, que podíamos olhar de longe, no bar.
Maravilhosas também eram as viagens de navio pros Estados Unidos e pra Europa, que duravam doze dias, intermináveis pros adultos, rapidíssimas pra minha irmã e pra mim.
Depois dessas longas férias, o Sion, o primeiro colégio, de onde vem toda a minha base educativa, cultural, religiosa e um pouco neurótica, que junto aos gritos e sussurros da casa onde morávamos muito contribuiu pra alguns anos de psicanálise, deixando, porém, assim como a casa, um saldo bastante positivo na minha vida, embora misterioso e amedrontador.
Meu pai era empresário e minha mãe, herdeira do Rhum Creosotado, remédio feito por meu bisavô, Ernesto de Souza, farmacêutico e poeta que realizava saraus em sua casa do Andaraí.
Além do Sion de Laranjeiras, freqüentei também o colégio Princesa Izabel, o Andrews e o São Fernando, não sei qual dos três, o mais saudoso.
Mudamos pra Av. Atlântica, quando Copacabana ainda era a “Princesinha do Mar” e a bossa-nova surgia desafinando a música e desafiando o horizonte. Toquei muito violão dissonante no Di Giorgio de papai, depois de aprender Noel Rosa com o mestre Patrício Teixeira.
Fiz alguns meses de Filosofia na PUC, de onde saí pra abrir uma boutique de roupas jovem em Copacabana, a Condotti, com minha amiga Sonia Ramalho.
Um dia vendemos a boutique e fomos passear na Europa.
Em Roma, conheci Gustavo Dahl, que estudava cinema no Centro Experimental e se tornou meu marido.
Voltei ao Brasil depois de um ano e fui apresentada ao Cinema Novo, de onde partiu o primeiro convite pra eu ser atriz, através do Walter Lima Jr. Fui pro Nordeste fazer a prima carioca do José Lins do Rego, que vai passar férias no delicioso engenho na Paraíba. Uma mudança radical na minha vida. Menino de Engenho e o Nordeste me deram uma consciência de classes, o prazer de conhecer um trabalho de equipe, todos visando o mesmo objetivo e discutindo-o em conjunto enquanto comiam à mesma mesa.
Meus pais, contrariados com a minha resolução de ser atriz (profissão inadequada a uma moça de família), quando viram o filme choraram de emoção, eles mesmos artistas em potencial, que tocavam piano clássico e violão popular, minha mãe, filha do escritor Gastão Penalva e membro do Clube do Eça de Queiroz, que discutia a sua obra em conjunto.
O mesmo aconteceu com minha primeira peça, Se Corrrer o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come, com o Grupo Opinião. Convidada pelo Vianinha, meus pais se preocuparam novamente com essa atriz que agora faria teatro, mas quando me viram interpretando a Mocinha, no Opinião de Copacabana, se orgulharam de mim.
Nessa carreira de atriz fiz uns trinta filmes, melhores, piores, ruins, ótimos, boas e más peças, novelas, linhas de show. Mas o que mais me empolgou na vida foi escrever meu primeiro livro, que teve início quando me senti perdida depois da alta de análise de grupo, minha família adotiva, que conheci quando meus pais morreram ainda jovens, um com 57, outra com 55 anos, ambos, tragicamente, no espaço de dois anos.
O estado de choque provocado por tais perdas irreparáveis, seguida a de todo o nosso dinheiro colocado, em confiança, a Companhia Cívica, que pediu falência, forçando-nos, minha irmã e eu a privação de todos os nossos bens, me fez procurar o Castellar, psicanalista que me tratou de graça por anos a fio junto com o melhor grupo que se poderia fazer parte, cuja solidariedade me resgatou de muitas das minhas tristezas e depressões.
Separando-me do grupo, não parei mais de escrever.
Casei-me também com o Marcos Medeiros, líder estudantil, em 68, com o qual peguei um exílio de carona, depois de ter sido presa por um dia, com a polícia vasculhando o Teatro Princesa Izabel, onde eu representava O Avarento, de Molière, ao lado de Procópio Ferreira, que voltava a atuar, vinte anos depois.
Cinco anos exilada na Europa, tive uma filha, que mudou a minha vida trazendo-me um afeto desconhecido e fundamental. Joana nasceu em Paris. Mais tarde fui pra Roma com ela, e Marcos, pra Cuba com o Glauber Rocha. Fiz teatro em Roma e viajei pela Itália. Voltei para o Brasil com minha filha e continuei minha carreira de atriz cheia de altos e baixos regidos pela falta de dinheiro e a ditadura do país.
Passei momentos difíceis na carreira e na vida, até que viajei pelo Brasil, com a peça do Marcos Caruso, Trair e Coçar é só Começar, com um elenco de oito pessoas e passei a descrever nossa viagem em forma de crônicas, que mandava pro Zuenir Ventura, diretor do Caderno B do Jornal do Brasil, na época. Ele as publicava dizendo: “Está muito bom. Só não tem dinheiro. Mas continua escrevendo...”
E depois de publicada toda a nossa incrível viagem de norte a sul do país, fui contratada pelo Jornal do Brasil, em 1985. Ausente por uns tempos, voltei, emocionada, ao mesmo jornal e a outras crônicas, espécie de psicanálise atual, que substituiu a do Castellar, onde conto minhas alegrias e tristezas jogando nelas os fantasmas que habitavam o vão da escada preta da minha casa de infância, os relatos de colégio, as viagens à Europa, os anos 60, 1968,
o exílio, a época hippie e as histórias de amor.
Maria Lúcia Dahl, atriz, escritora e roteirista. Participou de mais de 50 filmes entre os quais - Macunaima, Menino de Engenho, Gente Fina é outra Coisa - 29 peças teatrais destacando-se- Se Correr o Bicho pega se ficar o bicho come - Trair e coçar é só começar- O Avarento. Na televisão trabalhou na Rede Globo em cerca de 29 novelas entre as quais - Dancing Days - Anos Dourados - Gabriela e recentemente em - Aquele Beijo. Como cronista escreveu durante 26 anos no Jornal do Brasil e algum tempo no Estado de São Paulo. Escreveu 5 livros sendo 2 de crônicas - O Quebra Cabeça e a Bailarina Agradece-, um romance, Alem da arrebentação, a biografia de Antonio Bivar e a sua autobiografia,- Quem não ouve o seu papai um dia balança e cai. Como redatora escreveu para o Chico Anisio Show.Como roteirista fez recentemente o filme - Vendo ou Alugo - vencedor de mais de 20 premios em festivais no Brasil.Direto da Redação, editado pelo jornalista Rui Martins.Depoimento da irmã Marília sobre Maria Lúcia
Quando a minha irmã nasceu, eu tinha três anos e quis morrer. Achei que aquele neném fazia parte de um complô para acabar com a minha vida, porque a partir daquele dia eu teria que dividir tudo com ela. A minha mãe teve inclusive o bom senso de contratar mais uma babá, porque se eu tivesse que rachar a minha seria o fim. Por causa de babá, pelo menos, ninguém ia brigar. Hoje a Maria Lucia é muito presente na minha vida e vice-versa. No bom sentido. A intimidade que tenho com ela não encontro em nenhuma das minhas amizades. Não sei se todas as irmãs do mundo são assim. A minha é. Agora sei que irmandade é uma coisa muito séria e esta palavra, pra mim, não é apenas teórica. Ela exprime, de verdade, um amor que passa por cima das pequenas diferenças. A gente pode até não se ver muito, mas não é raro eu falar com ela duas vezes por dia. Sem esses telefonemas para conferir todos os meus raciocínios, fica difícil a vida. Quando ela esteve exilada em Paris, por exemplo, me faltava um pedaço. E isso não é literatura: eu realmente sentia falta de um pedaço meu. O Reveillon e todas as datas comemorativas ficavam impraticáveis sem a sua companhia. Para quem achava que ela só podia atrapalhar, a mudança foi grande.
Até hoje acho que Maria Lucia se tornou atriz por acaso. Formada em Filosofia, teve todo o seu caminho intelectual desviado para uma profissão que não lhe dava maior prazer a não ser o da libertação da mulher burguesa, aquela que largava tudo para ir para o Nordeste com um grupo mambembe de filmagem. Mas isso é que dá ser muito bonita. A anatomia é destino: no caso dela, a beleza falou mais alto e a empurrou para os papéis da patroa, da loura, da rica. Se ela fosse menos bonita, talvez tivesse tido mais chance de fazer o que ela realmente queria.
Não sei se ela era a pessoa certa para brilhar em Cannes como ela brilhava, por exemplo. É claro que, por um lado, ninguém resiste a essa tentação. Por outro lado, nada dava prazer a ela como ler e escrever. Seu primeiro convite para fazer cinema partiu de Joaquim Pedro de Andrade: O Padre e a Moça. Nosso pai ficou muito meio de pé atrás, porque achava que ela não devia se expor. É um filme seríssimo e hoje em dia a gente morre de rir só de pensar que um pai pudesse considerar aquilo uma transgressão. Mesmo o papai, que era a pessoa menos careta do mundo. Ele ficava chocado com tanta demanda pela beleza da Maria Lucia. E talvez, inteligente que era, sentisse que aquilo ali era um desvio.
Chegamos a trabalhar juntas, quando ela era atriz. Fiz o figurino de uma peça e de alguns filmes. Era ótimo trabalharmos com ela. Não existia, ali, o
egocentrismo e o narcisismo desmedido que vejo em algumas atrizes. Paparicada do jeito que ela era, aliás, é quase um milagre que tenha amadurecido tão bem, com tanta sabedoria e tranqüilidade de avó sensata. É que o que a realiza mesmo é o intelecto, mais do que a imagem. O seu grande barato é ler e escrever. São as duas coisas que ela mais gosta na vida. Fora os netos, é claro.
O texto dela é um cruzamento de Proust com Rubem Braga. Rubem Braga porque ele era uma pessoa carioquíssima, como ela, mas não o carioca de botequim. Era aquele carioca recolhido, caseiro, que olhava a cidade do alto. E Proust porque, ao mesmo tempo, Maria Lucia é pautada pelas “madeleines”. Basta ela ir a Petrópolis com o neto, parar no Alemão e pronto, lá vem a serra, o frio, o gosto da torta, a neblina. Rubem Braga e Proust: um cruzamento dos deuses. Com refinamento ela fala do que está do avesso, não das verdades óbvias. Pura filigrana. É isso o que eu mais gosto no seu texto. Sobretudo as sutilezas e o humor. Ela é a pessoa mais distraída do mundo, completamente imprecisa e capaz de não saber em que mês ou ano está, mas tem uma observação absolutamente aguda do universo.
No meu caso, o prazer de leitora é maior porque conheço as histórias e, é claro, muitas vezes me vejo nelas. Também ajudo a lembrar de alguns fatos em longos telefonemas, sempre muito prazerosos. Ela é obcecada por detalhes, que aos poucos vão virando crônicas. Falamos muito sobre a infância passada em Petrópolis, por exemplo. Petrópolis, com a neblina e o cheiro de lança-perfume no Hotel Quitandinha, é fortíssimo nas nossas vidas. É a nossa “madeleine”.
Marília Carneiro
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