Rio de Janeiro, 22 de Dezembro de 2024

Lula revisita Hamlet: ‘Ser E não ser’

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Terça, 22 de Agosto de 2017 às 10:02, por: CdB

Lula fura todas as bolhas e parece galvanizar uma vontade coletiva dos que perderam a esperança, numa espécie de retomada de um fio condutor da Nação consigo mesma.

 

Por Gilberto Maringoni - de São Paulo

 

Lula está brilhando em sua passagem pelo nordeste. As cenas do ex-presidente com o povo são impressionantes. Ataca sem dó a situação. "O país não precisa ser a merda que é", diz, em linguagem clara para todos. Não tivemos em nossa História outra liderança com tamanha capacidade de interlocução com os de baixo. Nem mesmo Getúlio.

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Lula segue, com maestria, na linha dúbia de discursos díspares, mas concatenados para cada público. No específico e no geral

Lula fura todas as bolhas e parece galvanizar uma vontade coletiva dos que perderam a esperança, numa espécie de retomada de um fio condutor da Nação consigo mesma.

Desesperançados e desesperados se ligam em sua pessoa, na busca de incertos “bons tempos” existentes no imaginário coletivo e no diferencial do que é a hecatombe do governo Temer com seus anos no Planalto.

Meirelles

Ao mesmo tempo, o ex-presidente joga um bolão naquilo em que é insuperável. Estica a corda de um lado e alivia de outro. Em entrevista ao programa de rádio de Mário Kertèsz, na manhã de sexta-feira, saiu-se com esta:

“Eu conheço bem o Meirelles. É um homem de mercado. Quando o Meirelles aceitou ser meu ministro, presidente do Banco Central, ele tinha sido o deputado federal mais votado pelo PSDB de Goiás. Eu o convenci (...) e devo muita gratidão ao Meirelles. Muita. Pela lealdade com que ele se comportou quando trabalhou comigo. (...) Acho que o Meirelles teria contribuído para a Dilma ".

Trata-se de lulismo na veia. Repetiu de viva voz o que faz na desde a “Carta aos Brasileiros”, de 2002, ao prometer mudança aos de baixo e manutenção das regras aos de cima. Entre duas opções contraditórias, Lula escolhe ambas e espera para ver que bicho vai dar, azeitando tudo com sua incomparável habilidade. Se fosse Hamlet, não se enrolaria no “Ser ou não ser”. Adotaria as duas opções.

Baliza institucional

O ex-presidente não parece fazer as duas falas no mesmo comprimento de onda. Para o grande público, joga para cima a autoestima popular, numa quadra de desconstrução da Nação. É fulgurante..

A entrevista para Mario Kertèsz, por sua vez, embute outra lógica: a métrica para eternos acordos e redução de danos, feitos para audiência com endereço definido e restrito. É simplismo dizer que ele tem um discurso para cada plateia.

O ex-metalúrgico se move em baliza institucional estreita, premido pela perspectiva de condenação judicial e pela possibilidade real de vencer em 2018, se a disputa for minimamente limpa . E isso o leva a emitir a dupla mensagem no meio do fogo contrário. Declara guerra e iça a bandeira branca ao mesmo tempo.

Plano global

Uma nova gestão petista periga ser mais rebaixada em enfrentamentos do que o mandato 2003-07. Isso não acontecerá apenas pela vontade do ex-mandatário, mas porque a correlação de forças é pior e porque as classes dominantes estão unificadas, ao contrário do que ocorreu há 15 anos. Mesmo assim, o grande capital não o engole em condições normais de temperatura e pressão. Alguém com sua impressionante legitimidade pode um dia ser incontrolável.

O diferencial real e concreto em Lula é sua campanha. Até agora e por maior que seja seu esforço, nenhuma fração burguesa significativa tem a perspectiva de se somar à sua pregação. Reportagens devastadoras nos noticiários televisivos, manchetes de jornais e revistas e obscuros magistrados loucos por aparecer, tudo pesa contra. É a materialização de uma maior agressividade do capital em tempos de crise, num novo ciclo de acumulação e concentração no plano global.

Por isso são inúteis os apelos de Lula por uma frente amplíssima, que envolva os miseráveis e a alta finança, como aponta seu aceno a Meirelles, sua cria.

Golpismo

Juntar as críticas aos dois comportamentos do petista - a pregação para amplas camadas populares com sua tentativa de atrair o grande capital – num único canal funciona para nós, em nossas bolhas.

Para Lula e para suas crescente plateias, parecem ser mundos diversos. Denunciar seu comportamento como “traição de classe” ou coisa que o valha é para lá de inócuo. Lula já mostrou: não pretende realizar transformação social alguma, mas buscar acordos sem luta. Está avisando para quem quiser entender. Seu intento é claro e é bobagem reclamar disso.

Embora muita gente tenha fórmulas mais eficientes na cabeça, quem atrai multidões e rompe bolhas é ele.

Resta ver se sua tática de chamar o golpismo – pois Meirelles representa o coração da ruptura de 2016 – para um chá com torradas surtirá efeito em tempos de depressão profunda, cenário muito pior do que a crise de 2002.

Gilberto Maringoni é cientista político e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC). É filiado ao PSOL e foi candidato ao governo do Estado de São Paulo em 2014.

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