Neste início de 2018, o Correio do Brasil traz aos seus leitores uma entrevista com Johan Galtung, na qual ele prevê o fim do império norte-americano e o início de um novo tempo no planeta, dentro de dois anos.
Por Redação, com Rita Siza/Público - de Lisboa
No último dia de 2017, diante tantos votos de paz e amor no mundo, o sociólogo e matemático norueguês Johan Galtung não fica no desejo. Ao longo de seus 87 anos, dedicou quase uma vida inteira aos estudos da paz. Foi ele que, há quase 60 anos, estabeleceu a disciplina no currículo acadêmico de uma das mais respeitáveis universidades dos EUA, a Columbia, em Nova York; ao mesmo tempo que lançava o Instituto de Pesquisas da Paz, em Oslo.
Apesar do desejo de bilhões de seres humanos, no entanto, a paz é um artigo raro. Neste início de 2018, o Correio do Brasil traz aos seus leitores uma entrevista com Galtung, na qual ele prevê o fim do império norte-americano e o início de um novo tempo no planeta, dentro de dois anos. No campo acadêmico, o professor elaborou modelos e desenvolveu teorias que serviram para prever – corretamente – a revolução iraniana; ou o colapso da União Soviética.
E fora dos portais da academia, participou na intermediação de mais de uma centena de conflitos. Desde a antiga Iugoslávia, outros no Médio Oriente ou no Afeganistão. Atualmente, dirige a Transcend International; uma rede sem fins lucrativos para a paz, desenvolvimento e meio ambiente.
— Pode explicar-nos como tudo começou?
— Na verdade eu comecei em 1958, por isso são seis décadas! Duas coisas aconteceram nesse ano. Eu era professor de Sociologia na Universidade de Columbia, e a minha intenção era estudar, publicar. Com os meus alunos de doutoramento, fui a Charlottesville, na Virginia, para entrevistar duas mil pessoas; mas depois de chegar lá o xerife e o prefeito vieram falar comigo:
“Sabe, o Supremo Tribunal decidiu acabar com a segregação nas escolas. Como podemos fazê-lo de forma pacífica?”
A pergunta pareceu-me mais importante do que escrever um livro, e foi assim que despertei para a mediação de paz. A outra coisa que aconteceu foi que estabeleci a distinção entre a paz negativa e paz positiva. Fazia isso de forma teórica; por isso a teoria da investigação da paz e a prática da intermediação juntaram-se em 1958.
— Ao longo dessas seis décadas, o mundo passou por transformações profundas. A sua abordagem também mudou?
— Sim, está sempre a mudar. Quando não se faz só a teoria, mas também a prática, descobrem-se problemas em que antes não tínhamos pensado. Isso enriquece a teoria. Ao mesmo tempo, exige que a teoria venha a ser indicativa da prática; ou seja, perante uma determinada situação, indicar uma determinada resposta. Já fiz isso mais de 150 vezes: perante situações muito concretas, propus soluções.
— Essa experiência levou-o a desenhar um modelo matemático para a mediação de paz e resolução de conflitos. Como funciona?
— Não lhe chamaria exatamente um modelo. Diria, antes, que é uma indicação de quatro coisas que devem ser feitas para alcançar esse objetivo. Apresento-a sob a forma de uma fração, com duas coisas positivas no numerador e duas negativas no denominador. A primeira coisa positiva é crítica, e tem a ver com a cooperação para um benefício mútuo e igual entre as partes.
A segunda, vamos chamar-lhe harmonia ou empatia, significa que somos capazes de entender o outro lado; ou todos os lados, a partir do interior. Isto é, se eu for uma parte num conflito, tenho de me entender a mim próprio e ao outro lado. E se sou o mediador, tenho de entender todos os lados.
Depois, no denominador dessa fração temos o trauma multiplicado pelo conflito. O que quero dizer em relação ao trauma é que pode levar à vingança; e o conflito pode levar à agressão. Para diminuir o trauma e o conflito, tem de se fazer conciliação e resolução.
Portanto, nessa equação matemática temos quatro tarefas. E ainda poderia acrescentar uma quinta; a que chamo de “aprofundamento cultural”. E que passa pela compreensão do roteiro invisível que motiva a ação das partes; o seu código genético.
No caso dos Estados Unidos da América (EUA), chamo-lhe de DNA; as iniciais de Dualismo, Nuclear e Armagedom. Dualismo porque os EUA estão sempre a dividir o mundo em duas partes, uma boa e outra má, e Armagedom porque uma dessas opções é tão má que não se considera o diálogo; e o risco é sempre de acabar em batalha. A política externa norte-americana adequa-se a esse dualismo.
— Esse seu modelo pode aplicar-se a todos os casos e em todas circunstâncias?
— Precisamente. Não vou dizer que é fácil, mas pode fazer-se. Vou dar um exemplo concreto. Um casal em que o marido era um homem de negócios; que levava os seus livros de contabilidade para casa, e a mulher se converteu ao budismo. Ela levava a religião muito a sério. Ficava zangada com o marido porque achava que ele só se preocupava com dinheiro. E era a riqueza interior que importava.
Ele respondia que todo o conforto de que ela gostava exigia o dinheiro que ele ganhava. Estavam sempre discutindo. Ora, quando falo em empatia, refiro-me a encontrar algo de positivo que as duas partes possam fazer. A primeira regra é falar com um de cada vez; para perceber o que querem.
E eu digo: não há nada de errado em ser budista; e não há nada de errado em ser um homem de negócios. A minha estratégia, depois de falar com os ambos, foi perguntar: conseguem-se imaginar gerir juntos uma livraria budista? O “truque” é combinar a bondade das partes e fazer um projeto comum. Essa livraria ainda existe.
— Acredita que em cada conflito se pode encontrar esse ponto comum e que as partes podem sempre chegar a bom termo?
— Não se trata de compromisso. Isso seria se ela ficasse um pouco menos budista; e ele deixasse de trazer a contabilidade para casa. O que eu proponho é uma coisa diferente. Passa por transcender; por ir além para construir algo novo: ela continua a ser budista e ele continua a ser empresário; mas os dois deixam de se excluir.
A mediação é criar algo de novo em ambos os lados. Com algum treino é possível encontrar um meio de dar esse passo e construir essa ponte. Já o fiz muitas vezes, quer ao nível micro, para resolver conflitos entre pessoas; ao nível médio, entre sociedades; ao nível máximo, quando tratei de problemas entre Estados; e ao nível mega, entre regiões e civilizações.
— Nesses níveis macro e mega, enfrentamos desafios; do terrorismo às alterações climáticas e à proliferação nuclear. Ao mesmo tempo, os indicadores mostram que o mundo nunca conheceu tão poucos conflitos como agora. Como explica esta aparente contradição na nossa percepção aguda dos riscos e ameaças no mundo em que vivemos?
— A nossa percepção está totalmente errada. É verdade que o mundo está melhor do que nunca. Mas temos um mundo multipolar. Isso significa que lidamos com situações que são muito diferentes. Lidamos com conflitos entre o Ocidente e o islã, mas também lidamos com conflitos na África e nas Américas.
Temos a questão de Israel e da Palestina ou, se quisermos, a questão do mundo judaico-cristão e do mundo árabe. Na Ásia Central temos o Afeganistão, que é muito complicado. Temos a China a assumir um novo papel preponderante no mundo. E temos uma política mundial que é pacífica mas com armamento.
Os EUA que geriam o mundo em nome do Ocidente. Sem nunca terem pedido autorização, intervieram militarmente mais de 2 mil vezes, desde 1801. Esse é um número que as pessoas não conhecem. Como também não sabem que, desde 1945, os EUA mataram mais de 20 milhões de pessoas em mais de 47 países.
Os EUA são um grande problema, tal como Israel. São as duas grandes fontes de guerras. A razão por que hoje temos terrorismo é, em grande parte, uma resposta à violência dos EUA e Israel. É verdade que não temos guerras entre Estados, elas quase desapareceram. Agora temos outro fenômeno, a que chamo terrorismo de Estado; e que é largar bombas em cima da população civil.
Em relação ao outro terrorismo, é o 99 para 1. As pessoas ou estão dormindo ou fizeram-lhes uma lavagem cerebral. Mas, com tudo isto que se passa no mundo, o que eu digo é o mesmo: encontrem a raiz do conflito e tentem resolvê-lo. Através de três fases: mapeamento; legitimação e construção de pontes. Ou seja, onde estão as partes; como justifico o que pretendo e como construo uma ponte entre objetivos legítimos.
— Quer dizer que, mesmo que por vezes não seja possível evitar o conflito, é possível encontrar uma solução não violenta?
— De forma dogmática diria que é sempre possível; o que não quer dizer que essa solução possa ser encontrada imediatamente. É preciso procurá-la, e pode não ser fácil. O momento crítico é dar esse passo criativo. É o momento em que pensamos: que tal uma livraria budista? Temos de ver o valor que existe em ambos os lados.
— As lideranças políticas de hoje; a quem compete resolver tantos conflitos complexos, têm essa criatividade?
— As lideranças ocidentais não têm mostrado criatividade alguma. Mas encontro enorme criatividade na China. Por exemplo, na ideia que tiveram de convidar todo o mundo a usar a nova rota da seda; a infraestrutura de rodovias, ferrovias e portos que ainda hoje são construídos. Com esse projeto, eles conseguiram abrir a África muito mais do que em todo o período do colonialismo. Claro que não estão a fazê-lo só por generosidade.
Esperam recolher os seus lucros. Mas mostram como se podem encontrar novas oportunidades. E os africanos estão gratos. A China tem a vantagem de tratar os africanos de uma maneira muito diferente. Melhor do que fizeram os britânicos, os franceses; os belgas, os portugueses. O que se passou (no período colonial) não foi nada bonito.
— O senhor tem teorias influentes sobre a ascensão e a queda de impérios; que o levaram a prever a revolução iraniana, o colapso da União Soviética; a revolta da Praça de Tianamen. Como olha para a situação atual desses países?
— Para começar, temos de ver o que significavam esses impérios. Havia um país, um cliente, que tinha uma elite local a fazer o trabalho por ele. Pensemos, por exemplo, em Angola e Moçambique. E na elite local a produzir para os portugueses. Quando esses países se tornaram independentes, essa elite local deixou de fazer esse trabalho. Isso é o fim do imperialismo. E isso aconteceu muitas vezes, no último século.
O império soviético, que como eu previ acabou por volta dos anos 90, foi o último. A minha nova previsão é que até 2020 acabe o império dos Estados Unidos; que já só têm três países que estão dispostos a fazer o trabalho por eles: o Reino Unido, a Dinamarca e a Noruega.
E porquê? Porque são evangélicos. Não são católicos. Estes distanciaram-se. Na União Europeia, a mensagem foi muito clara: não vamos continuar a lutar nas guerras dos EUA. Mas o Reino Unido ainda luta as guerras dos EUA. A Dinamarca e a Noruega bombardearam a Líbia - enquanto a França e a Alemanha, por exemplo, não. E, por isso esses, países foram recompensados com primeiros-ministros nomeados para a Secretaria-Geral da Organização do Tratado Atlântico Norte (Otan). É assim que o sistema funciona.
— A sua previsão do fim do império dos EUA já tem em conta o impacto da eleição de Donald Trump e os possíveis efeitos das políticas da sua Administração?
— Com Trump, a situação deteriorara-se muito (mais) rapidamente. Donald Trump é incapaz de conceber relacionamentos recíprocos. Ele é narcisista e paranóico. Não acolhe ideias e reage com violência à crítica. Os países aliados dos EUA estão desesperados. Não sabem o que fazer.
Estou certo que no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Lisboa, como em muitos outros, estão desejosos que Trump possa desaparecer; o mais depressa possível, para poderem voltar a lidar com uma Administração normal. Mas também poderia dizer que, se os EUA aceitaram ter uma pessoa como Donald Trump na Presidência, então é porque também há o mesmo tipo de narcisismo e de paranóia nos EUA.
Os EUA pensam demasiado bem de si próprios. E chamam a isso “excepcionalismo”. Vêem ameaças à sua segurança por todo lado. Talvez, fosse melhor olharem para os demais países do mundo e pensar no que podem fazer e conseguir juntos. É isso que fazem os diretores das empresas. E fazem-no bem, estabelecendo parcerias. Fazem negócios muito melhor do que os políticos.
— Em algumas entrevistas, o senhor referiu-se aos conceitos de nação e Estado. E sobre a confusão que existe entre os dois, tanto para explicar crises distantes, como no Afeganistão; ou próximas, como a Catalunha…
— Sim, o jornal El País até sugeriu o meu nome como possível mediador para a crise. Então, vejamos: a posição de Madrid é “um Estado”. E a posição dos independentistas da Catalunha – minoritária— é “dois Estados”. Mas entre um e dois Estados há muitas alternativas. Antes da solução dois Estados, que é um passo dramático, ainda temos a federação, e a confederação. A federação seria uma solução simples.
Seria uma nação diferente, com a sua própria língua, e talvez com a sua própria gestão do fundo de pensões. E quando fizerem isso terão um grau mais elevado de autonomia; mesmo fazendo parte de Espanha. E, mesmo se quisessem chamar-se independentes, fariam parte de uma comunidade de nações em Espanha.
É uma questão de dois modelos: o modelo de Franco, “una grande libre”; e o oposto, “una comunidade de naciones”. Penso que a segunda hipótese é muito mais realista. Há seis nações em Espanha: os catalães, os bascos; os galegos, os castelhanos, os andaluzes; os baleares e os canários. Uma Espanha viável seria uma federação desses nações, com autonomia local mas um mesmo Estado. Penso que é um belo modelo.
De volta a 1640
Agora, são necessarias ideias concretas de como fazer isso. O que eu diria é para se ter cuidado com as hierarquias da Catalunha; com os mais ricos; que querem explorar os trabalhadores eles próprios sem ter de partilhar a riqueza com Madrid. Foi assim que se fez a independência dos EUA; quando os colonos decidiram que era melhor serem eles próprios a explorar os escravos, sem partilhar com Londres.
Ao mesmo tempo, os catalães têm todo o direito de querer governar o seu próprio país; com a sua língua e a sua cultura. Vai tudo de volta a 1640, que é também quando Portugal entra nesta equação. Filipe II tinha agitação na província de Portugal e na Catalunha; mas só tinha Exército para conter uma das duas rebeliões. E foi assim que Portugal se tornou independente, com a supressão da revolta da Catalunha.
Por isso penso que os portugueses, porque beneficiaram em 1640, deviam ter compaixão da Catalunha e pronunciar-se a favor, não da independência, mas de uma maior autonomia.