E os empresários souberam agir, de forma coordenada, assumindo o controle absoluto dos meios de comunicação, de pressão e de exercício do lobby. Em pleno golpe de Estado, controlam o Poder Executivo, o Congresso Nacional e o Poder Judiciário
Por Maria Fernanda Arruda - do Rio de Janeiro
O mundo do "coronelismo, enxada e voto", o mundo do Brasil rural, aquele que se esqueceu da "revolução industrial", escondida sob as barbas do Imperador, sobreviveu ainda na primeira metade do século XX. Só a partir de 1960 aconteceu, e muito depressa, o êxodo para as cidades. E foi quando o mandonismo dos donos das terras foi feito obsoleto, não sabendo como se opor ao populismo que se fazia ouvir nas falas dos comícios de praça-pública, com Ademar de Barros, Hugo Borghi, Jânio Quadros. Esse populismo teve seu momento mais alto com Jânio, levado à Presidência da República e foi relembrado, como pesadelo psicodélico, com Collor de Melo.
Ainda durante a década dos anos 50, é verdade que foi se consolidando um pensamento de "esquerda", de traços puramente acadêmicos, com Caio Prado Jr. e com Florestan Fernandes, propondo a análise marxista da realidade brasileira. Ao lado dele, nascia em São Paulo uma "democracia cristã" (em 1945, o professor Cesarino Junior fundou o PDC, com a participação de Franco Montoro, Queirós Filho, Plínio de Arruda Sampaio), que não ultrapassou os limites geográficos do Estado. Os democrata-cristãos e os comunistas poderiam ter contribuído para que a prática política não permanecesse limitada à pobreza do imediatismo ou do dogmatismo. Mas não souberam ou não quiseram fazê-lo. Quanto ao "trabalhismo" de Vargas, existiu até o seu fim em função da figura carismática de seu criador. Alberto Pascoalini e Fernando Ferrari poderiam ter modernizado esse trabalhismo, mas não venceram as forças de João Goulart e Ivete Vargas.
Intelectuais
O governo Juscelino Kubitschek foi violentamente contestado já no seu nascedouro, com as tentativas abortadas de golpe, tentando evitar a sua posse. O PSD, partido político que desde sua criação havia se proposto ao pragmatismo do dia-a-dia do exercício do poder, soube reconhecer que o mandonismo não o sustentaria. Seria necessário criar formas de diálogo e convencimento das populações urbanas cada vez maiores e decisivas nas disputas eleitorais. Era necessário o discurso, a formulação e divulgação de uma proposta que motivasse esse povo, uma ideologia. Isso foi feito pelo ISEB - Instituto Superior de Estados Brasileiros.
A classe empresarial (burguesia industrial) assumiria a responsabilidade por um projeto de desenvolvimento nacional, unindo em torno dela o proletariado urbano e rural, a classe média e o latifúndio mercantil. Esta união de classes deveria, por sua vez, ser obtida por inspiração de uma ideologia nacionalista, identificável como “consciência das massas”. A ideologia nacionalista deveria construir-se como um “pensamento brasileiro”, que resultasse de um “projeto teórico-ideológico, de natureza totalizante”.
Usaria-se, para isto, da sociologia, da política, da economia, da história e da filosofia. Tratava-se de uma “ideologia síntese”, a ser construída por um grupo de intelectuais, numa ação interdisciplinar. Esta seria tanto mais eficaz (do ponto de vista político-social) e verdadeira (do ponto de vista epistemológico) quanto mais rigorosa fosse a sua fundamentação ou embasamento teórico e científico. Palavras que lembravam, não por coincidência simples, aquelas que tinham sido pronunciadas no passado pelos Integralistas.
Nacionalismo
Hélio Jaguaribe, sociólogo, historiador, empresário, foi uma figura típica da segunda metade dos anos 50. Compôs preocupações intelectuais com interesses empresariais. Filho de família rica, uma biografia em suas linhas gerais semelhante à de Augusto Frederico Smidth, poeta modernista, amigo de Juscelino Kubitschek. Dono de rede de supermercados, embaixador do Brasil, conselheiro do presidente. Hélio Jaguaribe foi um aglutinador de pessoas começando com as reuniões do chamado “Grupo de Itatiaia”, reunindo nomes de prestígio. Criou inicialmente o IBES – Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política, tendo se aproximado de Juscelino Kubitschek. Apoiou sua candidatura e participou em seguida de seu governo.
Desde o início, compôs-se como um grupo muito heterogêneo, tendo participado dele: Álvaro Vieira Pinto e Alberto Guerreiro Ramos. Ainda, Augusto Frederico Schmidt, Atílio Vivacqua, Horácio Lafer, João de Scantimburgo, Flamínio Fávero, Levi Carneiro, Lucas Lopes, Pedro Calmon. Também Roberto Campos, entre vários outros. Muitas dessas figuras tiveram a sua participação limitada ao primeiro momento, ainda quando parecia possível que o Instituto iria adquirir prestígio político considerável.
O IBES deu origem ao ISEB – Instituto Social de Estudos Brasileiros, que veio a assumir um ideário que era inaceitável para muitos. Ora parecendo muito radical, ora sendo rejeitado por outros, que encontravam no mesmo ideário apenas a somatória de equívocos elementares. Enfim, o nacionalismo desenvolvimentista, “a ideologia típica das forças novas, que se acham identificadas com o processo de decolagem econômica do Brasil. A burguesia industrial, a classe média urbana tecnológica, a classe média rural tecnológica e o proletariado não cartorial”.
Celso Furtado
O nacionalismo desenvolvimentista não conseguiu ser a tônica do governo orientado por um "Plano de Metas" estruturado por Roberto Campos. Esvaziou-se no tempo, ferido de morte por seu equívoco/pecado original. Não havia aquela burguesia industrial modernizante. E nisso fica o momento de lucidez na análise de Fernando Henrique Cardoso, no seu livro Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil, de 1964.
Numa analise ortodoxamente marxista (e daí o pedido para o esquecimento, feito em mais adiante), fica desenhada com realismo a figura menor desse empresário brasileiro. Este, que jamais assumiria um projeto como o que foi pretendido pelos pensadores do ISEB e até mesmo por Celso Furtado. Os anos imediatamente seguintes, iniciado a década dos 1960, levaram à radicalização que por sua vez conduziu à ditadura de 1964.
Maketing político
O golpe de 1964 foi planejado por muitos, tomado o cuidado de deixar-se à conta dos militares a façanha inglória. Mas o golpe foi político, tramado com a orientação e o financiamento das elites nacionais. A partir do momento em que a conspiração tomou corpo, foi necessário criar novos instrumentos. Monta-se um esquema de marketing político. Em 1961 foi criado o IPES – Instituto de Pesquisas Sociais, iniciativa de um grupo de empresários. O IPES elaborou o seu discurso, pretendendo que ele estivesse baseado em dois documentos contemporâneos: a encíclica Mater et Magistra e o programa da “Aliança para o Progresso”.
Apresentava-se como agremiação sem cores partidárias, com finalidades educacionais e cívicas, pretendendo defender a democracia, contra os extremos de direita e de esquerda. O IPES mostrava-se defensor de reformas, o que implicou em considerável número de estudos e projetos, preparados com a colaboração de intelectuais e técnicos. Foram assinados convênios com a Pontifícia Universidade Católica, em São Paulo, em Campinas e depois no Rio de Janeiro. Criou-se o GPE – Grupo de Publicações/Editorial, com a participação de Wilson Figueiredo, Augusto Frederico Schmidt, Odylo Costa Filho e Raquel de Queiroz.
Arquitetura organizada
As suas publicações contavam com apoio de editoras como O Cruzeiro, Agir, Saraiva e Editora Nacional. Formou-se ainda o GOP – Grupo de Opinião Pública, com Jose Sette Câmara e Augusto Frederico Schmidt, secretariados por Nelida Piñon. A programação de cursos e seminários, que teria sido idealizada por Golbery do Couto e Silva, obteve repercussão e sucesso. Houve grande empenho para que ela se apresentasse como esforço competente para compreensão da realidade brasileira. Por isso mesmo, contou com a colaboração de intelectuais de diversas tendências.
Convencidos de que, em 1985, a Democracia nos fora devolvida, três anos depois fazendo-se a "Constituição Cidadã", caminhamos livres, sem lenço nem documento. O presidente metalúrgico dava ao Brasil o otimismo dos que podiam comer e estudar. Caminhávamos distraídos, dispostos a não enxergar os sinais, prontos à satisfação daquele slogan: "nunca antes, na história desse país …”. E, no entanto, novamente foi se compondo uma arquitetura muito bem planejada, organizada, composta e operada por homens de importância maior.
Doações ao golpe
Em 2005 foi criado o Instituto Millenium, propondo-se a disseminar uma visão de mundo baseada no liberalismo econômico (ou uma visão de "direita moderna”). Conta com o apoio de importantes grupos empresariais e meios de comunicação de massa. Busca influenciar a sociedade brasileira através da divulgação das ideias de seus representantes, especialistas e colunistas. O que foi criado: um partido político, acima dos demais, sem qualquer respeito ao Estado de Direito e à Constituição.
Reconhecido legalmente como instituição de interesse público, o Instituto Millenium tornou-se apto à "receber doações dedutíveis de Imposto de Renda de pessoas jurídicas de até 2%". Enquanto os que são reconhecidos formalmente como partidos políticos não podem mais receber doações de pessoas jurídicas, esse super-partido é sustentado por doações da Rede Globo, Grupo Abril, Grupo OESP, a ABERT, por grupos industriais, como Gerdau e Suzano.
Gestores do golpe
O Millenium chegou para tentar sustentar teoricamente a luta dos que ainda defendem o neoliberalismo à brasileira. Não lembra o IPES e o IBAD por acaso. O Millenium acompanha uma tradição golpista existente no Brasil. Uma tradição golpista da nossa velha mídia inclusive. Não aceita, não engole um governo que, pela via democrática, e com parâmetros distintos do neoliberalismo, estava mudando o Brasil. E faz de tudo para derrotar esse projeto.
Conta com a orientação de homens como: Alexandre Schwartsman, Armínio Fraga, Gustavo Franco, Ives Gandra, João Roberto Marinho, Jorge Gerdau Johannpeter, Ricardo Diniz, entre vários outros. O gestor do Fundo Patrimonial é ninguém menos do que Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, mas ao seu lado está Henrique Meirelles.
Entre os "membros convidados": Ali Kamel, André Franco Montoro Filho, Carlos Alberto Di Franco e Carlos Alberto Sardenberg. Ainda, Cláudia Costin, Eugênio Bucci, Demétrio Magnoli, Denis Rosenfield, Guilherme Fiuza, Gustavo Franco, José Padilha, José Roberto Guzzo. Mailson da Nóbrega, Marcos Cintra, Merval Pereira, Nelson Motta,Paulo Brossard e Pedro Malan. Especialistas colaboradores: Arnaldo Niskier, Bolivar Lamounier, Hélio Beltrão, Jose Neumanne Pinto, José Álvaro Moisés, Leôncio Martins Rodrigues, Roberto Da Matta. Ainda, Rodrigo Constantino, Rolf Kuntz e Salomon Schwartzman. Este último possui notória competência junto ao sistema financeiro.
'Tíbia, acorvadada'
E os empresários souberam agir, de forma coordenada, assumindo o controle absoluto dos meios de comunicação, de pressão e de exercício do lobby. Controlam o Poder Executivo, o Congresso Nacional e o Poder Judiciário. Seguem assentados nas poltronas confortáveis do Supremo Tribunal Federal. Manipulam o Tribunal Superior Eleitoral, com a figura lastimável de Gilmar Mendes. E transformaram o Tribunal de Contas da União em câmara de uma nova Santa Inquisição.
A tentativa de regulação da mídia, quando foi feita, foi tímida e reservada. Não se discute conteúdo. O que se discute então? Agora, quem sabe, o tamanho do fracasso do PT será o alvo da discussão. O poder de fogo concentrado pelo Instituto Millenium foi, hoje se constata, um desperdício. Poderia ter sido menor, diante da fraqueza tíbia, acovardada, de um Poder Executivo que se desejava derrubar. Não demonstrou competência e nem mesmo vontade de sustentar-se. Culpemos os outros, os que impediram Dilma Rousseff de governar: eles tiveram vontade e competência para cometer o crime.
E uma última observação: derrotado o PT, não foram as "esquerdas" as derrotadas. Nem Lula e nem o PT jamais foram forças de esquerda. Hoje, exatamente, o que se precisa é de um partido político que assuma um projeto, que mantenha atualizado um programa. Que saiba que o poder emana do povo e que é com esse povo que se deve, obrigatoriamente dialogar. Isso é, falar e ouvir.
Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras.