Comparada aos outros regimes militares sangrentos do Cone Sul na mesma época, a ditadura que governou o Brasil entre 1964 e 1985 pode ter parecido mais tranquila.
Mas, para os familiares das vítimas, o governo militar realizou caçadas tão cruéis como as de Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai.
Diferentemente do que fizeram alguns de seus vizinhos, o Brasil não tomou muitas providências para lançar luz sobre essa "guerra suja" depois que se redemocratizou. Mas a Justiça pode mudar isso.
Uma decisão judicial rejeitou um recurso do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva contra a abertura de arquivos secretos de um sórdido capítulo da repressão na era militar, a guerrilha do Araguaia.
Segundo analistas, Lula hesitou em revelar documentos da ditadura, preocupado com suas relações com os militares.
Para o deputado e ex-guerrilheiro Fernando Gabeira (sem partido-RJ), que abandonou o PT por discordar das políticas de Lula, "a decisão da Justiça salva o governo, que não tinha coragem nem de abrir os arquivos e nem de fechá-los".
O governo Lula não recorrerá da decisão.
A guerrilha do Araguaia foi exterminada pelo Exército em 1974, em operações nas quais se estima que 60 pessoas tenham desaparecido.
De acordo com testemunhos, os guerrilheiros foram torturados e depois assassinados, e seus corpos foram escondidos.
Pela decisão judicial, o governo terá quatro meses para divulgar os documentos e, com base neles, informar onde estão enterrados os corpos e trasladá-los a cemitérios próximos às residências dos familiares.
"A sentença é importante. Confirma o direito que as famílias e a própria sociedade têm de saber o que aconteceu", disse Nilmário Miranda, secretário nacional de Direitos Humanos.
Desde 1982, familiares das vítimas pedem na Justiça que o Exército libere seus arquivos sobre o assunto.
Cerca de 400 opositores morreram no Brasil durante o regime militar. O Estado assumiu a responsabilidade pelos crimes e pelas perseguições e indenizou vítimas e familiares, mas os documentos sobre a repressão permaneceram ocultos.
Além disso, por causa da anistia, a Justiça nunca atribuiu responsabilidades individuais por crimes cometidos pela guerrilha ou pelos militares.
Quase 20 anos se passaram desde o fim da ditadura, mas a conveniência de abrir ou não os arquivos secretos ainda é tema de discussão.
Para Cecília Coimbra, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais, "o Brasil é o país mais atrasado da América Latina no resgate de sua história".
Em alguns países, como na Argentina, comandantes do regime militar (1976-1984) foram julgados e condenados, chegando a cumprir vários anos de prisão antes do indulto, em 1990.
Alguns deles voltaram a ser presos por crimes como o roubo de bebês, filhos de vítimas da repressão, que matou entre 9.000 e 30 mil pessoas no país. Além disso, uma comissão oficial revelou os horrores dos campos clandestinos de detenção. O chefe do Exército fez um mea culpa sobre a atuação da força militar.
No Chile, os familiares das vítimas receberam indenizações e os tribunais começaram a agilizar os processos por desaparecimento, morte e tortura depois da prisão do ex-ditador Augusto Pinochet em Londres, em 1998.
Outros chefes de serviços de segurança e da polícia política de Pinochet foram processados e condenados, e recentemente foram recolhidos os depoimentos de mais de 35 mil testemunhas, sob as instruções do presidente Ricardo Lagos. O relatório concluiu que a tortura foi uma prática sistemática e uma política de Estado durante a ditadura.
Mas, no Brasil, as coisas andam mais devagar. Segundo Gabeira, ainda "há uma vontade de governar sem criar crises com os militares". E, acrescentou, como a repressão foi "menos maciça que no Chile e na Argentina, a pressão popular para ajustar contas foi um pouco menor".