Era um diálogo surrealista. Um de frente pro outro, ele balançava para um lado, eu para o oposto, surfando na prancha. Indaguei se o tribunal ou a televisão exibiram documentos, provas concretas.
Por José Ribamar Bessa Freire, de Niterói:
- O Lula disse que queria voltar a Presidência da República para roubar 500 milhões. Eu ouvi a gravação. Era a voz dele. Era ele mesmo – disse a senhora gasguita, que fazia exercícios num simulador de caminhada duplo, na academia ao ar livre para idosos, ao lado de sua amiga, mais gorda, porém de aparência mais jovem. Calado, eu me exercitava ao lado no aparelho de remada sentada. Esse papo rolou um dia depois da condenação de Lula a 12 anos e 1 mês de prisão.
- O Lula vai ser condenado em outro processo pelo assassinato de dona Mariza, vai morrer na cadeia – contra-atacou a gordinha, eufórica e raivosa, garantindo que quem lhe assegurou isso em primeirissima mão foi sua filha que mora em Curitiba e é assim ó – esfrega os dois dedos indicadores – com uma tal de dona Lilica, que é tia do juiz Sérgio Moro.
Pensei cá com os meus botões: quem sou eu para contestar a autoridade da tia do juiz Moro? Se tia Lilica falou, tá falado.
Naquela manhãzinha, a condenação de Lula era o único assunto dos idosos que diariamente tagarelam, repercutindo as notícias da véspera. Quem pauta as conversas é o telejornal, o tom é dado pela notícia editorializada. Normalmente, tapo os ouvidos e fico calado. Entro no parque, dou bom dia genérico e faço minha ginástica, sempre retraído e taciturno, porque não me sinto competente para participar na conversa de pessoas bem informadas, dotadas de admirável credulidade, especialmente em boatos e fake news que reforçam e confirmam aquilo em que foram levadas a acreditar. Sou um homem de pouca fé.
Quando me dirigi ao aparelho de surf duplo, com balanço lateral, que oscila como um pêndulo, entrou na minha frente um idoso, de ombros arqueados e sobrancelhudo, chamado ironicamente pelas costas de “Colírio”, apelido dado pelas mesmas senhoras. Eu surfava na prancha para um lado, O “Colírio” surfava para o outro. Puxou papo:
- O Canalha recorreu e o Tribunal Regional Federal aumentou a pena. Vai recorrer ao Supremo, que vai aumentar ainda mais. O Canalha agora quer fugir para a Etiópia, onde tem conta em banco. Mas o Canalha não vai conseguir.
Rompi meu silêncio obsequioso, fingindo não entender:
- Quem é o Canalha?
- O Lula, ora, quem seria? O dono do tríplex em Guarujá.
Era um diálogo surrealista. Um de frente pro outro, ele balançava para um lado, eu para o oposto, surfando na prancha. Indaguei se o tribunal ou a televisão exibiram documentos, provas concretas. A resposta do “Colírio” foi admirável, refletindo uma inteligência privilegiada de quem é capaz de ler nas entrelinhas, ver o sentido oculto e desvendar pensamentos:
- O Canalha é esperto. Você acha que ele ia deixar suas impressões digitais? Mas tem delação premiada. Felizmente o Sérgio Moro foi mais esperto.
- Não li o processo. Você leu? – perguntei.
- Não precisa ler. A televisão comentou – respondeu o “Colírio”.
Não hesitei em inventar na hora uma mentira deslavada, para dar “isenção” ao meu discurso e tentar fazer o “Colírio” raciocinar:
- Nunca votei no Lula.
O "Colírio" sentiu que tínhamos algo em comum. Prossegui admitindo que o tríplex do Guarujá, que não é um apartamento de luxo na avenida Foch, em Paris, pode até estar no nome de um “laranja”, embora não existam provas, mas se o Lula é ladrão, então o Aécio Neves é o quê? O Temer, o Padilha, o Moreira Franco, o Jucá, o Marun, o Beto Mansur, o André Moura são o quê? Einh? Einh? Você votou no Aécio?
O “Colírio” ficou sem jeito. Lembrei, então, a fala do ministro do STF, Luís Roberto Barroso sobre o caso do senador Aécio Neves (PSDB/MG). “Dos 650 mil presos brasileiros poucos têm tantas provas como Aécio. Ele pediu R$ 2 milhões a Joesley Batista, o dinheiro foi entregue em uma mala a um primo do senador, tudo filmado, gravado. Num trecho da gravação, Aécio afirma que vai indicar para pegar o dinheiro alguém que possa matar antes de fazer a delação”.
O executivo da Odebrecht, Henrique Valladares, em delação premiada há um ano, confessou que "Aécio recebeu R$ 50 milhões, 30 milhões da Odebrecht e 20 milhões da Andrade Gutierrez". Exibiu comprovantes bancários de depósitos para o senador Tucano em uma conta de offshore em Cingapura. A grana dá para comprar vários triplex e uma quantidade incalculável de pedalinhos.
Apesar de tantas provas, áudio, filmagens, malas de dinheiro, depósitos bancários, Aécio que aparece numa foto obscena comemorando ao lado de Sérgio Moro, sequer foi afastado do Senado e continua saracoteando pelo Leblon, no Rio. A celeridade do judiciário recomendável para todos os casos, só ocorreu no processo contra Lula para impedir sua candidatura a presidente da República. Enquanto isso, o escândalo do mensalão tucano em Minas Gerais, com peculato e lavagem de dinheiro na campanha para a reeleição de Eduardo Azeredo, que ocorreu em 1998, até hoje se arrasta pelos tribunais. Talvez isso ajude a explicar a popularidade de Lula. Aquele eleitor que percebe as manobras do Poder Judiciário realizadas não para exercer justiça ou lutar contra a corrupção, mas para destruir o Lula, fica indignado. Lula parece ter no Judiciário um grande cabo eleitoral.
Depois de ouvir esse discurso, o “Colírio” desviou de assunto e usou o discurso do Joaquim Passarinho do PSD do Pará (vixe, vixe) e do Ricardo Tripoli do PSDB de São Paulo (vixe, vixe) para quem “a decisão corajosa do TRF-4 em manter a condenação de Lula mostra mais uma vez que a lei pode e deve valer para todos. Foi um dia histórico para o País”.
Objetei que dia histórico e decisão corajosa seria aquele em que algum ladrão do PSDB – são muitos – entrasse em cana. O “Colírio” desceu de sua prancha, desconversou e foi embora levando com ele a certeza de setores da sociedade brasileira que desenvolve o mesmo – digamos assim – raciocínio da tia Lilica. Ele garante que a tia Lilica tem razão.
Afinal que Brasil você quer para o futuro?
O “Colírio” já gravou o seu depoimento dentro da própria academia ao ar livre para idosos em uma praça de Niterói (RJ), sempre com o celular na horizontal, deitado, numa distância aproximada de 1 metro, segundo as instruções daGlobo. Ele sempre segue as instruções da Globo. Seu recado teve menos que os 15 segundos sugeridos pela campanha:
- O Brasil que quero para o futuro é um Brasil sem Lula, com tia Lilica.
O "Colírio" continua surfando para um lado e eu para o outro.
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