“Vivemos em uma democracia sequestrada”, diz Saramago

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Publicado quarta-feira, 28 de abril de 2004 as 12:58, por: CdB

O escritor português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, criticou na terça-feira a fraqueza e as contradições do sistema democrático, apontando como uma de suas causas o fato de os governos terem se convertido em simples comissários políticos do poder econômico.

“A democracia não está cumprindo com suas obrigações (…) que têm a ver com o bem-estar, com a felicidade dos cidadãos”, disse Saramago em um evento em Madri realizado para apresentar seu livro mais recente, “Ensaio sobre a Lucidez”, descrito como “uma fábula, uma sátira e uma tragédia sobre a democracia”.

O livro é ambientado numa cidade sem nome onde são realizadas eleições nas quais 83 por cento dos votos emitidos são em branco.

O autor explicou que em Portugal, onde o livro foi publicado há um mês, a obra foi comentada em todos os tons possíveis, “desde aplausos até execrações”, e que se chegou a afirmar que ele, Saramago, queria destruir a democracia.

O escritor atribuiu esse frisson ao fato de que a classe política teria “entrado em pânico” ao vislumbrar uma situação perigosa para ela, já que “os partidos preferem a abstenção ao voto em branco”, que, em sua opinião, só se tolera se atinge apenas uma porcentagem baixa em uma eleição.

“Vivemos em uma espécie de bolha democrática, mas, no fundo, essa expressão é um eufemismo. Vivemos em uma democracia sequestrada, ou bloqueada ou amputada”, declarou Saramago, que se define como um “comunista defensor da democracia”.

Autor de obras como “O Evangelho segundo Jesus Cristo” e “Ensaio sobre a Cegueira”, Saramago disse que é o poder econômico que realmente condiciona nossas vidas e que esse poder, representado por organismos como o Fundo Monetário Internacional, não é democraticamente eleito.

“Somos governados por um poder que não é democrático, e é aí que está o paradoxo”, assinalou Saramago, acrescentando que a democracia política funciona, mas não a econômica ou a cultural.

“O mundo está encharcado de mentiras”, afirmou.

Para o autor, o voto em branco representa um protesto, uma forma de manifestação de descontentamento, mas ele destacou que tampouco o defende, já que o voto em branco não constitui panacéia, e sim um dos direitos dos cidadãos.

“O único remédio, se é que existe, é uma vivência democrática e efetiva dos povos”, declarou.