Reconstruir a casa

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Publicado segunda-feira, 7 de agosto de 2006 as 11:36, por: CdB

Os estados nacionais são como as residências: de vez em quando é preciso reformá-las e, ao reformá-las, mudar os hábitos domésticos. Quando as moradias são sólidas, levantadas em terreno firme e sobre alicerces duros e profundos, as reformas são relativamente fáceis. Trata-se de trocar o forro e o telhado, abrir uma porta e fechar outra, ampliar o quarto, acrescentar o alpendre. Mas há situações em que é preciso arrebentar tudo. Isso ocorre quando as infiltrações comprometem a estrutura, e os cupins, os ratos e as baratas conseguem escapar da limpeza comum. O Estado Brasileiro está precisando de uma reforma de alto a baixo.

Essa consciência tem levado à proposta de reforma constitucional ampla e profunda. O problema é que – conforme disse Lula – é difícil que o Congresso se disponha a legislar contra os seus privilégios. O parlamento deveria ser a última das instituições a adotar o corporativismo. Primeiro, porque a representação política não pode ser vista como profissão. A representação política é um acidente biográfico. A pessoa é escolhida para representar a Nação, mediante o voto de parcela dos cidadãos, que têm interesses e atividades diferentes. Ao terminar o mandato, o parlamentar retorna à vida normal. No passado, ele nem mesmo deixava a vida profissional, porque os parlamentos se reuniam em períodos curtos, a fim de legislar, ou, quando a situação política exigisse suas deliberações.

Para que seja legítima, uma assembléia nacional constituinte tem que ser originária – isto é, ser eleita diretamente pelo povo, sem a influência dos poderes instalados, que apenas a podem convocar, e sem quaisquer limites. O poder constituinte é “constituinte”, ou seja, é como se o Estado estivesse nascendo naquele momento. Os constituintes podem tudo, e, no exagero da razão, até mesmo dissolver o Estado. É o momento em que as instituições devolvem ao povo o que ao povo pertence: seu próprio destino. Há situações em que a legitimidade do ato constitucional é assumida transcendentalmente, como no caso da Convenção de Filadélfia, que aprovou a mais antiga das constituições escritas em vigor. A delegação não fora pelo voto universal dos cidadãos, mas mediante a escolha em reuniões aleatórias nos Estados constituídos com a independência, a fim de estabelecer um modus vivendi entre eles. Ao se reunirem, esses homens assumiram as razões de seu povo e sua identidade, ao iniciar o documento com as palavras fortes, We, the people.

Não é necessário pesquisar a fundo para sentir o que deseja o nosso povo. Ele deseja, como todos os povos, viver em paz e em segurança. A vida de todos os dias se tornou uma corrida no meio do inferno. Voltar à casa, a salvo, é uma concessão do acaso. Mas a casa não é a fortaleza do passado. Quantos não morrem dormindo, como ocorreu ao casal chacinado pela filha e seus cúmplices? Nem mesmo os mais ricos e, portanto, os mais protegidos, se sentem em segurança. Se querem andar pelas ruas e visitar os parques públicos, terão que exilar-se temporariamente do Brasil, e aproveitar-se do anonimato no estrangeiro. Os potentados só se deslocam em helicópteros, mas os helicópteros também caem, como freqüentemente acontece.

A segurança das pessoas é uma dádiva da justiça. Quanto mais justiça houver, em qualquer comunidade (começando nas relações familiares), mais tranqüilidade haverá. Em uma sociedade em que há quem ganhe mensalmente quinhentas vezes o salário mínimo (o que ocorre a alguns diretores executivos de grandes empresas), como se alguém pudesse ter quinhentas bocas e mil braços, a segurança está mais longe do que Marte, que neste agosto estará bem próximo da Terra.

Tudo isso mostra que temos que fazer um novo contrato entre nós, para que possamos restaurar o mínimo de justiça e de paz. Não podemos continuar entre os países mais desiguais do mundo, competindo, nessa corrida para trás, com os mais pobres países africanos. O contrato social se estabelece com a Constituição. Mas, para começ