Quando os poetas tomaram para si a responsabilidade da transformação social

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Publicado segunda-feira, 27 de junho de 2016 as 14:58, por: CdB

Sua obra literária pertence a uma forma especial de poesia, cujas principais preocupações foram instigar uma identidade necessária para a revolução política que fervilhava em Angola

 

Por Flávio Corrêa de Mello – do Rio de Janeiro:

 

Agostinho Neto, poeta e médico por formação, foi um dos líderes do MPLA (Movimento Popular de Libertação da Angola) e do processo revolucionário que culminou com a libertação do povo angolano do jugo colonialista português depois da revolução dos Cravos, sendo, logo após, proclamado o primeiro Presidente da República Popular de Angola. Na prática militante, entre os companheiros do movimento independentista, tanto a medicina quanto a poesia tornaram-se os instrumentos de uma luta que se forjou, sobretudo, pelo direito à vida.

Agostinho Neto, poeta e médico por formação, foi um dos líderes do MPLA (Movimento Popular de Libertação da Angola)
Agostinho Neto, poeta e médico por formação, foi um dos líderes do MPLA (Movimento Popular de Libertação da Angola)

Sua obra literária pertence a uma forma especial de poesia, cujas principais preocupações foram instigar uma identidade necessária para a revolução política que fervilhava em Angola. Os versos de Agostinho destacam-se pelo caráter insubmisso e libertário. Trata-se de uma poesia dolorosa, projetada, porém, para um futuro promissor.

Em Sagrada Esperança, livro lançado na década de setenta, porém escrito inicialmente ao longo dos anos quarenta, nota-se a esperança de uma Angola livre em detrimento à existência de cânticos simples de saudades, como vemos nos versos abaixo, do poema de abertura da obra:

“Minha mãe (todas as mães negras cujos filhos já partiram) tu me ensinaste a esperar como esperaste nas horas difíceis. Mas a vida matou em mim esta mística esperança. Eu já não espero sou aquele por quem se espera. Sou eu minha mãe a esperança somos nós os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida (…)”

A esperança de Agostinho sedimenta-se numa espécie de renascimento. A mãe África não pode mais esperar pela morte de seus filhos e cabe aos mesmos a inauguração de um novo tempo, de uma nova liberdade:

“Atingi o Zero. Cheguei à hora do início do mundo e resolvi não existir.. Cheguei ao Zero-Espaço ao Nada-Tempo ao eu coincidente com vós-Tudo. E o que é mais importante: Salvei o mundo!”

Assim, constrói-se a literatura do poeta, como um ponto nascedouro. Ricos em oralidade, seus poemas constituíram parte de cânticos capazes de organizar seus compatriotas para um conflito armado que durou de 1961 até 1975. “cheguei à hora do início do mundo e resolvi não existir” retoma o dilema da colonialismo e a extirpação culltural dos povos africanos. Esta negação da existência, de ser sombra, espectro que não habita o corpo social colonial e de perder as raízes da roda, da oralidade e de seu legado prenhe de memória – Em Africa, culturalmente, o conhecimento é essencialmente transmitido por ensinamentos dos mais velhos. É a experiência da prática da oralidade das crenças e das formas de viver. Neste sentido, não existir é não aceitar o domínio colonial, mas também de reinventar a tradição cultural, é a hora zero, o novo momento.

Os escritores e o MPLA

É impossível dissociar os mecanismos de criação literária aos fenômenos impostos por anos de colonização portuguesa, principalmente nos autores da geração de Agostinho. O povo angolano conviveu com exploração demasiada do solo, das pessoas, dos abusos sexuais, do escravagismo, da coisificação, de modo que os substratos da colonização fomentaram uma literatura alicerçada no desejo de liberdade. Portugal provou de seu próprio veneno na medida em que sufocou as culturas locais e promoveu uma sociedade baseada na divisão social de castas. A imposição da língua portuguesa foi, certamente, um de seus reveses, pois ao instar a língua como a obrigatória na colônia, possibilitou as vanguardas independistas de se apropriarem do português e disseminarem mensagens, escritos, poemas e panfletos que funcionaram como o estopim libertário em um país convulcionado pela segregação. Manuel Rui em Eu e o outro – o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto, traz uma reflexão interessante sobre como se estabeleceu a relação da cultura oral africana e Portugal:

“Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores, parrelas sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegaste! Mas não! Preferiste disparar os canhões. A partir daí comecei a pensar que tu não eras tu, mas outro, por me parecer difícil aceitar que da tua identidade fazia parte esse projeto de chegar e bombardear o meu texto. Mais tarde viria a constatar que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão: a escrita. E que também sistematicamente no texto que fazias escrito inventavas destruir o meu texto ouvido e visto. Eu sou eu e a minha identidade nunca a havia pensado integrando a destruição do que não me pertence”.

Diversos contemporâneos de Agostinho, entre eles Antônio Jacinto, que colaborou no periódico Mensagem – A voz dos naturais de Angola e Brado Africano, e Luandino Viera (José Matheus Vieira da Graça), este português de origem, uniram-se em organizações e agremiações cujos objetivos eram protestar contra o governo português e a política Salazarista. Dessa forma, organizaram o embrião do processo libertador. No fim da década de quarenta, com a eclosão do movimento Novos Intelectuais de Angola, várias revistas, concursos e recitais eram feitos em Luanda com a intenção de revigorar a pluridentidade angolana. A responsabilidade atribuída ao movimento era a de formar e mobilizar as diversas nações angolanas em torno de um desejo comum: a repulsa ao projeto de nação colonial português e ao incentivo de uma autonomia cultural, independista.

No segundo número de mensagem, o grupo se autoidentifica como um ativo grupo “um activo agrupamento literário em que militam alguns dos valores mais expressivos da moderníssima geração angolana”. Muito embora, o grupo tenha pretendido a mobilização (esta só foi possível com a fundação do MPLA), sua atuação foi importante na perspectiva de retomar a iniciativa de um projeto de autonomia consciente, de livre pensamento, de ação criativa e plural, que acontecia no decorrer do processo inserrucional. É nesta época que Viriato da Cruz escreve o Manifesto Comunista Angolano, instando uma práxis de tomada de consciência no interior do pensamento do ex-colonizado e uma perspectiva de unidade capaz de convergir os povos das diversas tribos,reunindo-os ante o projeto colonial português. Trata-se, então, de se referenciar, aqui, o primeiro projeto revolucionário a existir em Angola. Mesmo que em Angola, não houvesse uma divisão de classes (propriamente dita nos moldes sociológicos) houve a possibilidade de se referir, a partir dos esforços dos escritores, a uma narrativa projecional de uma comunidade imaginada preparada a lutar contra o regime salazarista e a reconquistar o seu momento histórico. Muitos desses autores e intelectuais foram a base de formação do MPLA, fundado em 1956, que além de lutar pela independência, combateu por mais vinte cinco anos as forças da UNITAS (União Nacional para Independência Total de Angola) e os exércitos regulares do Zaire e da África do Sul.

Talvez o exemplo de Angola seja um dos únicos em que a literatura contribuiu incisivamente para uma luta de libertação. Olhar para esse processo como um exemplo de uma realidade possível de uma arte que se compromete com a transformação social em dado momento histórico ressignifica como a literatura pode ser práxis, pode ter um papel não somente de testemunho, mas também de compromisso classista e de promoção de desejos, de alegrias, de sentires, de capacidade afetar para além do reflexo da alienação em que nos submetemos diante do capital.

Por isso, ainda precisamos de muitos Agostinhos e Viriatos. De fato, precisamos empoderar uma literatura que reflita sob as nossas questões mais pertinentes da atualidade: uma literatura que encorpa a oratura das favelas, dos movimentos sociais, dos trabalhadores, dos LGBTs, das periferias. Ela está aí circulando, gradativamente se organizando num movimento que sonhamos caudaloso, vivo, revolucionário.

 

Flávio Corrêa de Mello, é poeta, professor de Literatura e de Oficinas Literárias,.