O que vai fazer o Brasil no Haiti?

Arquivado em: Arquivo CDB
Publicado sexta-feira, 12 de março de 2004 as 12:27, por: CdB

O Brasil já fez uma experiência similar, na República Dominicana,, durante a ditadura militar, em 1965. Tropas brasileiras, dirigidas pelo general Meira Mattos, participaram, junto com as norte-americanas, da invasão daquele país, como parte de um golpe militar que derrubou o presidente eleito, Juan Bosch. Foi um capítulo vergonhoso na história do país.
Agora o Brasil se apresta a mandar tropas ao Haiti. O que o Brasil vai fazer lá?

Pode ser que não saibamos muito bem, mas os EUA sabem. Sua estratégia atual tem nesse tipo de ação no exterior, tutelando países que considera que não têm condições de se autogovernar. Justifica assim a necessidade de uma força imperial, se possível dividindo responsabilidades com outros paises.

O governo de Aristide no Haiti não é igual ao de Bosch, na República Dominicana. Reposto no governo por Washington, ele se revelou ser distinto do padre da teologia da libertação, que havia galvanizado o apoio popular contra a ditadura de Papa e Baby Doc. Governou de forma ditatorial, com corrupção e fraude eleitoral, repressão contra os movimentos sociais e as forças democráticas que o haviam apoiado. Acabou criando uma guarda similar às da ditadura, até que um setor dessas bandas passou a se opor a ele e, aliado a forças remanescentes da época da ditadura, catalisou o descontentamento popular contra o governo de Aristide – em meio à deterioração econômica e social, acentuada pela suspensão das ajudas externas, pelas eleições fraudadas – e criou a situação que acabou levando à sua derrubada.

Com o pretexto de evitar um banho de sangue, tropas francesas e norte-americanas desembarcaram no Haiti, Aristide foi levado para fora do país e um governo provisório foi instalado. Tropas dos EUA se encarregam da ordem interna e já mataram dois haitianos. Fala-se em eleições só daqui a dois anos. Em suma, se está tirando dos haitianos o direito de decidir sobre os seus próprios destinos – tenha Aristide renunciado, tenha sido seqüestrado ou tivesse de qualquer forma sido derrubado.

O Brasil não pode e não deve participar de um contingente de tropas que não tem mandato claro, com prazos definidos, subordinado a uma comissão de representantes das organizações democráticas. O Brasil pode até desejar isso e acreditar que, presidindo o contingente, possa zelar por esses interesses democráticos, mas a presença prévia das tropas dos EUA e da França, sua inequívoca superioridade militar, a capacidade de ação política que têm e principalmente os antecedentes de intervenções do governo norte-americano, especialmente durante o período Bush, recomendam que o Brasil não entre nessa aventura. E que, ao contrário, aja em todos os organismos regionais, continentais e internacionais, para que seja entregue no mais breve prazo possível a decisão sobre os destinos futuros do Haiti. O papel dos outros países e dos organismos internacionais é o de apoiar o povo haitiano e não substituí-lo, menos ainda mediante uma ocupação militar.

Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de “A vingança da História