O povo brasileiro

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Publicado sexta-feira, 14 de outubro de 2016 as 11:13, por: CdB

Para onde foi o povo brasileiro? Para a periferia das cidades, para viver em favelas. O campo tornou-se um vazio. As cidades incharam-se, desordenadas, num crescimento caótico e desumano

 

Por Maria Fernanda Arruda – do Rio de Janeiro

Ainda quando terminava a primeira metade do século passado, a população brasileira era majoritariamente rural. Só mesmo a partir de 1960, os campos foram rapidamente esvaziados. Tanto pelo “êxodo” (a seca no Nordeste e a cidade oferecendo o emprego da sobrevivência), como pela “expulsão” (resultado da modernização tecnológica e da configuração nova dada pela “globalização” à agroindústria brasileira).

As novas riquezas nacionais dispensaram o trabalhador fixo, substituindo-o pelo “boia-fria”, expulso para a periferia das cidades. Com a abertura da nova grande fronteira, a partir da década dos anos 60,a agroindústria sustentada na propriedade da terra permitiu o surgimento do latifúndio moderno, voltado para o mercado externo, operando com tecnologia adequada para fazê-lo globalmente competitivo, a mão de obra intensiva dando lugar à mecanização. O Brasil tornou-se celeiro do mundo. Fornece a ele soja, milho, carnes, açúcar, café, milho, localizado no centro-oeste, atividades geradoras de emprego para gestores, administradores, técnicos, mão de obra qualificada.

Maioria excluída

Maria Fernanda Arruda
Maria Fernanda Arruda é colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras

Para onde foi o povo brasileiro? Para a periferia das cidades, para viver em favelas. O campo tornou-se um vazio. As cidades incharam-se, desordenadas, num crescimento caótico e desumano. Passam a incorporar toda a brutalidade asquerosa da modernidade periférica, que exige uma nova estratificação. Não mais baseada nos processos de produção, determinando a organização em classes sociais, mas no consumo. Este é organizado em segmentos de mercado, muito mais dura e violenta, que implica na separação radical entre dois mundos. O mundo das elites, e o das massas.

Em nenhum momento, em nenhum governo, houve a preocupação com planejamento das cidades. Mesmo as cidades fabricadas, como Belo Horizonte, Aracaju, Brasília, mantiveram qualquer fidelidade aos objetivos que nortearam a sua criação. O que sempre predominou foi o imediatismo da especulação imobiliária. Esta, por meio de agentes: as empresas construtoras e “incorporadoras”, criaram um mercado artificial, vendedor de ilusões às classes médias. Despejam as massas nas periferias, elas que, necessárias à construção da modernidade, desde logo foram excluídas de suas vantagens. E é assim que a maior parte do povo brasileiro é excluída.

‘Pobres de espírito’

Viver perifericamente, em ruas que carecem de infraestrutura e de saneamento. Em casas construídas precariamente, construções quase sempre clandestinas, compartilhando da violência de ruas dominadas por gangues e vazias de policiamento. Vive-se fazendo filas: fila no posto de saúde, no ponto do ônibus. Fila para matricular o filho na escola pública, de viver e de morrer. Quem mora na periferia vê televisão, assiste à propaganda das Casas Bahia, onde compra o que não tem qualidade, mas que também não é necessário. Não lê jornal, não vai ao cinema (não existe na periferia). Vai ao bar, joga totó, não teve tempo nem mesmo para cultivar uma cultura da pobreza, vive a pobreza de cultura, simples massa de manobra do marketing daquilo que se deve e pode vender aos “pobres de espírito”. A televisão ensina tudo: como falar, como vestir (se possível), o que comer (se possível), o que “curtir” (se possível).

Os habitantes das periferias não conhecem os políticos e nem os partidos políticos, não têm noção do que é feito e desfeito na esfera pública. Mas conhecem todos os astros e estrelas das telas, conhecem todas as tramas das novelas. Exercem a “obrigação de votar”, pois o título de eleitor “em dia” é condição para obter emprego “com carteira assinada”. Um povo que passa a se divertir com a própria incompetência e ignorância. É o velho que declara o seu voto – “vou votar na mulher do homem”, logo corrigido pela vizinha – “não é mulher, é filha”. O populismo praticado ainda na segunda metade do século passado tornou-se desnecessário. Foi substituído, agora, pela estupidificação da informação enganadoramente sibilina, promovida pelos “meios democráticos” de imprensa falada e, especialmente, televisiva.

Globalização

Mais de 70% do povo brasileiro não sabem ler, escrever e interpretar, corretamente, aquilo que leram ou escreveram
Mais de 70% do povo brasileiro não sabem ler, escrever e interpretar, corretamente, aquilo que leram ou escreveram

Para as elites, a burguesia nacional e os segmentos mais altos de classe média associados a ela, a modernidade em última instância permite a realização mais completa de um ideal. Associada desde o princípio e em todos os sentidos ao exterior, marcada por uma cultura própria de uma colônia, a globalização (neoliberalismo) é o que mais lhes convém economicamente. Culturalmente, sempre se empenharam em praticar os padrões e procedimentos que podiam importar, distinguindo-se da massa, do povo nativo, ignorante, letárgico e mestiço.

Já para as classes médias, a modernidade teve que ser encarada como desafio, obrigando-as a profundos ajustamentos. Desde logo, viram os instrumentos que tinham lhe permitido no tempo alguma forma de ascensão social e econômica desaparecerem ou passarem por mudanças profundas. As até então chamadas “profissões liberais” vão deixando de ser liberais. Têm sido substituídas por relações de emprego: médico, engenheiro,advogado. Todos caminham para se tornar empregados, perdendo em “status” e em proventos.

As massas, excluídas, postas à margem — aquelas que governos trabalhistas voltaram os olhos por três mandatos presidenciais, fazendo uma política social “assistencialista”, a única viável de ser feita — ainda não era possível ensinar a pescar. Faltavam o anzol, a linha, a isca e a rede, além do barco. A partir de 2015, teve início a reversão do processo, quando a “casa-grande” exigiu respeito aos seus privilégios e voltou a exercer o seu mandonismo. Para elas, a modernidade, não fazendo sentido algum e não lhes oferecendo nada, está sendo e será imposta pelos mecanismos da exclusão.

Vida virtual

As massas não devem “fazer parte”. Devem aceitar a exclusão, sem nem mesmo entendê-la. Perdem qualquer referência cultural, são aviltadas nisso, para que possam ser usadas como “massa de manobra”. A sua capacidade para criar uma cultura própria precisa e é aniquilada. O que se dá às massas é a “cultura do vazio”, isso é, a miséria cultural. O equivalente da miséria material previamente imposta. Já em último estágio, oferece-se às massas a possibilidade de troca de suas vidas realmente pobres por uma vida virtual. Será a que experimentarão como assistentes de novelas e reality shows.

A televisão é a escola que ensina a alimentação, com os seus programas de culinária e anúncios da indústria de alimentos. A comida torna-se mercadoria. Ensina cuidados de higiene, mostrando o que é mais adequado para que as pessoas deixem de ter cheiro de pessoas. Mostra o que é divertimento: o riso tornado exercício padronizado. Cria padrões de linguagem, incluindo vocabulário e sotaque. A propaganda não se limita a anúncios que divulgam marcas. Ela ensina através da emulação, incentivando a cópia de modelos heróicos,estrelas do momento. O marketing empenha-se em convencer a todos, a começar pelas crianças e os adolescentes. É a criação da necessidade do supérfluo.

Brasileiro analfabeto

Um segundo instrumento utilizado pela educação da modernidade passou a ser, e cada vez mais, a religião da modernidade. Esta não se confunde, de forma alguma, com manifestações de religiosidade popular, desenvolvidas espontaneamente pelo povo. Esta religião nova, podendo indiferentemente tomar a forma de “religião evangélica” ou de “catolicismo carismático”, não é manifestação espontânea. Mas se caracteriza como um produto fabricado para as massas desesperadas, aquelas excluídas. Os seus templos multiplicam-se nos bairros periféricos, aonde são gritadas mensagens de grande impacto emocional. Em resumo, propõem o conformismo no mundo dos homens, a ser recompensado no céu.

Os resultados desse processo infernal são mensuráveis. Em 2005, nada menos do que 68% da população brasileira se enquadrava na categoria lastimável do “analfabetismo funcional”. A eles somavam-se outros 7% daqueles totalmente analfabetos. Assim, 75% do povo brasileiro não têm domínio pleno da leitura, da escrita e das operações básicas de matemática. Mesmo o mais hipócrita dos seres não poderá supor que esse povo tenha condições para avaliar projetos econômicos para o país. Ou analisar as políticas do Banco Central, despesas sociais e despesas com pagamento de juros. Menos ainda os projetos de proteção ambiental e a necessidade de construção de usinas hidrelétricas. A taxa do dólar e as políticas de importação…

Esquerda ou direita

Nada disso faz parte do mundo dessa gente que quer emprego, casa, comida, saúde e segurança. Mas, e isso clama aos céus, somente haverá democracia quando esse mesmo povo puder decidir, com consciência e lucidez, sobre aqueles que são os problemas maiores. E aqueles que definem rumos políticos, à esquerda ou à direita.

Se, efetivamente, as esquerdas no Brasil reconhecerem os desastres eleitorais de 2016 como resultado de sua insustentabilidade, então, e por dever elementar de coerência, entenderão que a primeira necessidade está em enxergar e entender o que é o povo brasileiro. Lula, não se trata de falar a ele, mas de ouvi-lo. E serão necessários muito engenho e arte para que se ofereçam meios ao povo, para que ele deixe de ser “massa de manobra”. Explorado de forma vil. E que possa aprender a pensar e analisar criticamente, usando da própria cabeça.

O ponto de partida: conhecer e respeitar a sabedoria e a cultura espontânea do povo. O que fazer? Libertar os brasileiros da exploração econômica e cultural que as elites impõem: a senzala não é apenas uma edificação física. É a animalização do homem pelo homem.

As esquerdas do Brasil carecem ainda de aprendizado.

Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras.