O demônio da cordialidade

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Publicado quarta-feira, 19 de outubro de 2005 as 10:51, por: CdB

A campanha do “não” pegou impulso a partir de um argumento que encontrou eco: o de que “estão querendo tirar um direito seu” de ter uma arma. O problema é que essa mágica fetichista da posse oculta a verdadeira dimensão do problema: o direito à vida e a negação do poder indiscriminado de matar
 
A subida do “não” nas pesquisas sobre o referendo do desarmamento tem várias causas. As mais visíveis são:

1) O desfoque da campanha do “sim”, que durante algum tempo se perdeu em apresentar “bons exemplos”, através de gente bonita e famosa, ao invés de argumentos.

2) A confusão da própria pergunta, que exige que quem queira dizer “não” ao desregrado comércio de armas deva votar “sim”, e vice-versa. Provavelmente quem formulou a pergunta se baseou na crença de que “o brasileiro” tem mais dificuldade de dizer “não” em público do que “sim”, o que é uma meia verdade, pois nós sabemos que uma das maravilhas da língua portuguesa é que as palavras podem significar o contrário de seu uso dicionarizado, dependendo do tom com que são ditas.

3) O “não” mobilizou o que o país tem de mais reacionário, num amplo arco que foi da revista Veja, satanizando (de novo) o MST à argumentação irracional de extrema esquerda de que é necessário manter a livre capacidade da população se armar contra o Estado burguês e a direita, como se fosse isso que estivesse em jogo e como se isso fizesse algum sentido. (Imagino o comando revolucionário do futuro ofuscante dirigindo um pedido a uma fábrica de berros: “precisamos de 3000 três oitão na segunda-feira, às 15 horas, pois temos uma revolução para terça de manhã”). Esse reacionarismo político tem como objetivo comum transformar o referendo numa espécie de plebiscito antecipado sobre o governo, visando a eleição de 2006.

4) O referendo também mobilizou um sentimento antipovo difuso na Casa Grande brasileira, para o qual não há sentido em ficar consultando as “massas” sobre matérias importantes; aí também grassa a percepção, que também atinge o condomínio da classe média, de que é um “desperdício” gastar dinheiro com tais consultas. Há aí o temor de que essa “moda” de “fazer referendo” pegue.

5) É claro que o lobby da indústria de armas, em escala nacional e mundial, foi mobilizado contra o “sim”. O referendo no Brasil poderia ser um marco para que outros países adotassem iniciativas semelhantes.

Mas há algo mais. A campanha do “não” pegou impulso a partir de um argumento que encontrou eco, o de que “estão querendo tirar um direito seu”. O argumento é capcioso; na verdade, o que a aprovação da proposta poria em prática seria uma regulamentação estrita para quem queira possuir arma, cuja finalidade teria de ser explicitamente declarada: uso profissional, nas razões previstas, arma de caça em situação de acordo, exercício esportivo. Isso traria um golpe de morte (do ponto de vista legal) para as milícias particulares agenciadas por fazendeiros, grileiros, bingueiros e outros “eiros” da vida. Além disso, quem quisesse adquirir uma arma para aquelas finalidades teria de se capacitar de fato para tanto.

Lembro-me da aparentemente paradoxal lição de um sargento, quando fiz instrução de tiro no CPOR. Dizia ele que a primeira condição para se usar uma arma era jamais, em circunstância alguma, aponta-la para alguém. Por quê?, era a perplexa pergunta. Daí vinham as duas outras: porque se apontar, é melhor estar a fim de usar. E se usar, é melhor saber atirar para matar. A truculência da lição apontava algo de real, pois é disso que se trata: atirar para matar, matar ou morrer. O que vejo na campanha do “não” sobre o “direito” de se ter uma arma, é um argumento que na verdade se dissolve na mágica fetichista da posse, como se ela por si só fosse a suposta legítima defesa contra a bandidagem, e um ocultamento da verdadeira dimensão do problema, que envolve na verdade o direito à vida e a negação do poder indiscriminado de matar.

Por paradoxal que seja a pal