O cargo desfigura

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Publicado terça-feira, 23 de março de 2004 as 19:20, por: CdB

A liturgia do cargo que acomete os presidenciáveis traz às suas faces um novo autor dos protagonismos políticos. A pompa dos palácios, o luxo dos carros com seguranças para todas as ocasiões, os jatos e helicópteros disponíveis para eventualidades somam-se à vaidade inerente aos comandantes e se transformam em uma poderosa arma de acomodação. Não que interfiram nos parâmetros políticos norteados pela democracia, mas caem como recompensa bem-vinda perante as agruras verbais atiradas ao personagem em destaque. Nenhum político, por mais idoneidade que tenha, foge ao estereótipo gerado pela mente popular. Lula é o mais novo alvo. Por culpa da inércia de seu governo, de herói passa, a passos largos, ao avesso da idolatria.

Diante de um cenário perturbador sócio-econômico em início de governo, a acusação aos adversários de outrora é uma arma inevitável para quem já pensa em reeleição. Quatro anos é pouco e, sabe-se, o povo tem pressa. Fernando Henrique disse que governar o Brasil era fácil, Lula não citou ainda esta frase infeliz do colega, mas ambos já compõem a lista das vítimas do poder. O cargo desfigura. FH não foi como presidente o sociólogo ilustre. Lula esqueceu o que pregava para virar presidente. O fator comum prova que há um abismo entre o discurso e o poder. Nem o professor tampouco o operário que odiava o FMI sobreviveram ao lapso da posse federal.

Lula sabe bem o que faz, apesar dos tropeços gramáticos nos discursos de improviso. Ele ainda é o ícone da luta de uma população que almeja o fim das disparidades sociais e econômicas. Por isso investe nas palavras de esperança. Mas por trás dele há o Partido dos Trabalhadores. Não bastassem os tiros diários da oposição no governo federal, o presidente convive, a contragosto, com as rixas dentro do próprio ninho, e isso o desgasta. Aos poucos, o PT mostra suas entranhas justamente quando a unidade devia ser a palavra de ordem numa administração. Era descabida a bronca pública do ministro Gushiken para que os colegas limitassem suas trocas de farpas na imprensa.

Torna-se evidente, então, que o perigo iminente é o descompasso numa base partidária que elege um chefe de Estado. É natural que cidadãos mudem de opinião para virarem presidentes – personagens recentes provam isso. O que ameaça a estabilidade política é a sobreposição dos súditos ao chefe. Em outras palavras, se um partido mostra seu despreparo em lidar com crises, não há um ícone de luta individual que permaneça no poder.