Desafios à nova esquerda

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Publicado segunda-feira, 5 de maio de 2003 as 01:04, por: CdB

O ideário socialista ruiu, vítima de sua pragmática identificação com o progresso material. Lenin enfatizou o socialismo como sinônimo de eletrificação. Os partidos comunistas no poder empenharam-se em desenvolver a infra-estrutura de seus respectivos países, porém sem a mesma atenção à formação da sociedade civil, democratização da estrutura política e ampliação do mercado varejista.

Socialismo deve rimar com emancipação humana, soberania nacional e, sobretudo, felicidade pessoal. No capitalismo, que exalta a competitividade, suporta-se a lógica de que a felicidade de um decorre da infelicidade de muitos. É outra vertente ética, enraizada na solidariedade, que torna o socialismo radicalmente diferente. “De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade”.

A esquerda latino-americana é desafiada, agora, a tornar-se menos leninista e mais guevarista. A autocracia partidária cede lugar às emulações morais. Mais leitura de Os manuscritos econômico-filosóficos de Marx e menos de O capital.

A ideologia progressista não pode mais ser reduzida a uma teoria econômica de natureza positivista. O socialismo não pode ser projetado como um capitalismo sem capitalistas. O que significa que não pode ser pautado por padrões de tecnologia e modelos de consumo.

O resgate da ética, a transparência no trato com a coisa pública, a tolerância nas relações e a intransigência nos princípios, o compromisso efetivo e afetivo com os setores mais carentes da população – eis a condição para uma esquerda que pretenda recuperar sua credibilidade e seu poder de humanização da sociedade.

O peruano José Carlos Mariátegui, que latinoamericanizou o marxismo, denunciou em seus escritos o culto supersticioso da idéia de progresso. Interessado em superar o positivismo e o determinismo, ele propôs um socialismo como “criação heróica” a partir do povo, tendo ao centro, na América Latina, a questão indígena, o universo camponês, a multidão de pobres, e não o prometeico proletariado industrial. Em suma, mais atenção ao povo e menos rigor na ótica de classe.

Na atual conjuntura latino-americana, fica descartada a estratégia libertadora centrada na proposta de assalto ao Estado. A Nicarágua sandinista comprovou que, devido à internacionalização do aparelho repressivo, monitorado pelos EUA, antes de apelar para a idéia de força é preciso recorrer à força das idéias. A eleição de Lula é expressão desse novo caminho.

Não se conquista o aparelho estatal sem antes estar consolidado o apoio de corações e mentes da maioria da população. Não se pode subestimar o sujeito popular: jovens, crentes, donas-de-casa etc. Esses setores não podem ser considerados mera massa eleitoral. Se a esquerda não se livrar do sectarismo e do dogmatismo, permanecerá isolada em suas purezas e certezas, sem condições de elaborar um novo senso comum popular.

Nem sempre a esquerda partidarizada reconheceu o merecido valor das práticas populares alternativas: lutas por sobrevivência e resistência; denúncias; conquista de direitos; preservação do meio ambiente; relações de gênero; combate à discriminação racial e/ou étnica etc.

Inútil dar um passo atrás e fixar-se na utopia do controle do Estado como pré-condição para transformar a sociedade. É preciso, antes, transformar a sociedade através de conquistas dos movimentos sociais, e de gestos e símbolos que façam emergir as raízes antipopulares do modelo neoliberal. Combinar as contradições de práticas cotidianas (empobrecimento progressivo da classe média, desemprego, disseminação das drogas) com as grandes estratégias políticas.

É fazer concessão à lógica burguesa admitir que o Estado é o único lugar onde reside o poder. Este se alarga pela sociedade civil, os movimentos populares, as ONG’s, a esfera da arte e da cultura, que incutem novos modos de pensar, de sentir e de agir, modificando valores e representações ideológicas, inclusive religiosas.

“Não queremos conquistar o mundo, mas torná-