De costas para o futuro

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Publicado segunda-feira, 29 de agosto de 2005 as 16:36, por: CdB

Sei que fica essa sensação de que nada avança, o país emperra, os políticos urubuzam em torno da carne fétida, e no fundo da alma o travo amargo da desesperança. Ah, como a desilusão atesta que o nosso alimento cotidiano não é o pão, nem o carinho escasso que oxigena o afeto. É a quimera, essa convicção arraigada de que o sonho é o prenúncio da realidade.

São tantas as dores, e também os temores, e fico a perguntar onde está o pouso em que descansaremos dessa longa jornada adentro da história e, dessedentados, cessaremos a árdua procura ao vislumbrar no horizonte as portas do Jardim do Éden. Pode-se ver, no amor fracassado ou na causa abortada, o cristal fragmentado no chão, reduzido a incontáveis brilhos prateados. No entanto, esse quase imperceptível reflexo comprova a pertinência do Sol.

No amor abre-se a ferida de uma perda que arrasta junto o que havia de melhor em nosso próprio íntimo. Ali não cabe a razão, a lógica formal, o consolo da retórica justificativa. Porque o afeto extrapola a geometria dos argumentos e transborda pelas estreitas margens da racionalidade. Revolve a subjetividade com a sua fina e longa lâmina invisível. Sobra o buraco negro descompensado, sugando mágoas, impulsos vingativos e desejos mórbidos, como se no reverso do amor a paixão se convertesse em possessão, demarcando os limites em que um se torna senhor de domínio do outro.

O dom se faz apego nessa projeção doentia que impede investir na felicidade do outro, suprema dádiva de quem ama sem mercadejar afetos. É a cruz dos pais da criança portadora de deficiência ou do filho drogado, esse dar incessante, esse desdobrar cotidianamente o coração, na expectativa de que o outro retorne, primeiramente não a quem o ama, mas a si mesmo. Então o fardo se torna leve e o peso suave. Como por milagre brota esse sentimento ressurrecional de que vale a pena viver para que outros tenham vida.

A trajetória de uma nação não difere muito desse tortuoso itinerário pessoal. Maculada a utopia, conspurcada a esperança, é natural essa sensação de que é inútil lutar, como se a pedra de Sísifo pesasse permanentemente em nossas costas e a poeira do aclive cegasse os nossos olhos.

Mas a memória vem em nosso socorro. Resgata tantas histórias e vitórias, o que nos permite hoje enquadrar tortura e escravidão na tétrica galeria dos crimes hediondos, e quiçá amanhã a pobreza e a fome figurem ali como graves violações dos direitos humanos. Há avanços, a ditadura envergonha-nos o passado, cidadania e democracia fortalecem-se nessa delicada renda onde se entrelaçam movimentos sociais, e a ética ensolara indignações.

Ainda que todos soframos dessa deletéria herança do pecado original, e alguns de nós permitam que a fraqueza congênita se apresente vulnerável ao vírus da corrupção, são as causas que justificam esse nosso empenho em não ceder às tentações da indiferença, do ceticismo inócuo, do gesto de Pilatos tentando desculpabilizar-se ao entregar o justo às feras.

As causas são melhores que as pessoas, alertava Brecht, e se legitimam por abarcarem multidões. Não é a promessa de campanha, nem o programa político que importa. É o que profana a condição humana: a miséria, o desamparo, a dor inconsútil, essa abissal desigualdade que nos condena à antinomia entre Caim e Abel. E ainda que o terremoto abale os alicerces da casa e destelhe ilusões, ainda que as águas do rio de Heráclito inundem o chão em que pisamos, ainda que a ambição superlativa mergulhe do trampolim nas águas turvas de acordos espúrios e traições deletérias, ainda assim o exercício perene de justiça se impõe, e por isso se impõe – e é esse sentido de perseverança militante que imprime à vida sabor de felicidade.

Não são os prazeres que justificam a existência, tão fugidios e, levados ao extremo, nefastos à subjetividade. Nem é o poder que traz em si a semente benigna de nossa humanidade. É o sentido histórico, saber por que se vive, abraçar a morte como desca