Coronelismos e Violência contra a Mulher Negra

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Publicado terça-feira, 31 de maio de 2005 as 23:58, por: CdB

Refletir sobre os significados da violência contra a mulher para a sua superação, inevitavelmente, leva a refletir sobre as configurações de uma hegemonia branca e masculino-dominante (levando em conta que entre as diversas masculinidades há subalternidades) nos espaços de poder. 

Para pensar sobre essa hegemonia, vou propor a sua nomeação de “coronelismos” ao agrupar as velhas e as novas constituições de poder patriarcal e racista. E daí convidarei as leitoras e os leitores a rememorar, antes de tudo, a origem do que veio a constituir o “poder do coronel”.

O velho coronelismo

O título de “coronel”, dado aos homens de grande poder local em regiões agrárias e de pouca presença estatal, veio da Guarda Nacional, milícia civil criada para substituir as forças oficiais suplantadas com a deposição de D. Pedro I. O governo da regência havia posto à venda os títulos militares; assim, grandes proprietários urbanos, com renda anual superior a 200 mil réis, e grandes proprietários rurais, com renda anual superior a 100 mil réis, poderiam se tornar major, tenente, tenente-coronel e coronel, realizando por sua conta o “patrulhamento” das ruas, estradas e propriedades nas primeiras décadas do séc. XIX.

A imagem do senhor coronel foi romantizada na literatura brasileira e nas expressões de cultura nacional. Como exemplo, atualmente assiste-se a uma novela global em que os coronéis são envoltos numa picaresca nuvem de folclorização, cuja violência real de suas manifestações de poder são ocultadas ou suavizadas em detrimento da verdadeira representação do coronelismo. Nas cenas, as mulheres negras, confinadas ao trabalho doméstico, são as “crias” da casa grande, convivendo em verdadeira devoção aos seus patrões e patroas.

Essa cena caricatural acaba por minimizar ou escantear o processo de violência que de fato estrutura o coronelismo com uma dimensão relacional de poder para além do modo de produção; oculta que o processo da centralização do poder no “coronel” se deu pela exploração histórica da pessoa negra e indígena e pela dominação sobre a mulher, definindo um local de poder exercido pelo patriarca branco em relações público-privadas de dominação humana, seja com o apoio ou com a omissão das instituições estatais.

Os neocoronéis

O coronelismo manteve-se, ora menos, ora mais, presente nas velhas oligarquias do país, em especial nas oligarquias agrárias que perpetuaram o mando local em nome das famílias de grandes proprietários de terras – em verdade, grileiros de terras e exploradores de trabalho análogo à escravização, como nas grandes usinas da zona da mata pernambucana. Retomou sua força, contudo, após o golpe militar de 1964, pela articulação dos militares com essas oligarquias, especialmente no Nordeste brasileiro. “Coronel” passou a ser sinônimo de homem de força política nos grotões nordestinos, com o grande poder de mando concentrado em seus espaços.

A violência institucionalizada durante esse período, muito além da perseguição política aos opositores do poder local e nacional, refletia a mesma violência de origem patriarcal e racista no âmbito do poder “privado” instituída desde a formação nacional. O doméstico, como reflexo “privado” do público, mantinha-se (e ainda é alimentado) como espaço livre para as expressões impunes da violência contra mulheres e meninas. A mulher negra, constituindo maioria dentre as trabalhadoras domésticas em decorrência da sua situação socioeconômica e cultural, representava, ainda mais, a sobreposição dos sujeitos subalternizados pela hegemonia branca, masculina e agrária: além de mulher, era negra e trabalhadora. Sobrepunham-se, da mesma forma, os instrumentos de dominação. Pelo poder do homem/coronel, a violência física e sexual permanecia na representação de poder dos engenhos. O “quarto da empregada” foi estabelecido como uma “neosenzala” nesse “neocoronelismo”, o mesmo espaço para a violação da dignidade da mulher negra, das con