Carinhas bonitas e sem conteúdo

Arquivado em: Arquivo CDB
Publicado quinta-feira, 14 de agosto de 2003 as 11:30, por: CdB

Durante o sugestivo painel A volta do alto padrão no jornalismo – o jornalismo sério é a base para a democracia, no recente congresso da Associação Nacional de Jornais, a jornalista americana Bonnie Anderson, ex-vice-presidente da CNN, apresentou pesquisa realizada nos Estados Unidos em que 58% dos entrevistados disseram acreditar que jornalistas inventam matérias. O resultado preocupante poderia se justificar por um efeito Jason Blair, mas Bonnie Anderson disse que a pesquisa foi feita antes do escândalo do repórter-inventor do New York Times, o que agrava ainda mais o seu resultado.

Para a jornalista americana, uma das razões desta descrença estaria no jornalismo de entretenimento adotado por boa parte da mídia americana, atualmente em mãos de grandes conglomerados voltados para o espetáculo. Repórter de front, com coberturas de guerras e uma bala alojada no ombro, Bonnie contou ter deixado a CNN quando um manda-chuva determinou que os repórteres da rede passassem a ser jovens bonitos, não preocupando-se com formação e conteúdo. A jornalista mencionou ainda um processo de seleção na CNN, no qual observou uma jovem muito bem arrumada, maquiada e afetada, que lhe chamou atenção. Perguntou então à jovem o que a motivava a fazer jornalismo? “Para ser o centro das atenções”, respondeu a moça, de pronto, revelando uma falha de origem, possivelmente bem do agrado dos novos donos da mídia americana. Bonnie Anderson disse que a resposta a levou a descartar a candidata, mas aposta que a jovem deve estar hoje à frente de algum telejornal americano.

Fica mesmo difícil recuperar o alto padrão do jornalismo diante de políticas editoriais equivocadas, que valorizam mais o jornalismo espetáculo e a vaidade dos repórteres. Aqui mesmo, cansamos de ver na tevê jornalistas afirmando que “o ministro me disse”, “o empresário me contou”, colocando-se à frente da notícia, numa inversão completa de papéis.

Existem outros fatores que impossibilitam um jornalismo de alto padrão. Nos Estados Unidos de Bonnie Anderson, o patriotismo cegou a mídia, que apoiou incondicionalmente a invasão do Iraque, comprando sem maiores questionamentos a versão das armas de destruição em massa. O país que já derrubou um presidente pela ação de jornalistas, hoje parece impotente diante do rolo compressor de Bush.

Outro aspecto complexo é o direito de uma mesma pessoa ou organização deter diferentes meios de comunicação, como rádios, jornais e emissoras de tevê. Nos EUA, isso era proibido, mas a lei está sendo flexibilizada. Aqui, não existe proibição, o que reforça o jornalismo-espetáculo.

Muitos fatores podem ser invocados, mas a base para um jornalismo sério está, fundamentalmente, na independência. A fragilidade econômica da maioria dos meios de comunicação no Brasil os deixa mais expostos a aventureiros e investidores sem qualquer conhecimento e compromisso com o jornalismo de alto padrão.


*Mair Pena Neto é jornalista. Trabalhou no Globo, JB e Agência Estado. Foi correspondente da F-1 em Londres durante 3 anos, editor de política do JB e repórter especial de Economia. É gerente de Comunicação Social da Souza Cruz, no Rio.

Contato com o jornalista: mairpenaneto@diretodaredacao.com