Bancada evangélica quer intervir na cultura popular

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Publicado segunda-feira, 13 de março de 2023 as 20:45, por: CdB

Felizmente ainda não somos obrigados a cantar só o gospel dos evangélicos, mas o risco existe de muitos Eli Borges, se transformarem numa pressão contra a liberdade de pensamento e de quererem impor seu culto, seu credo e suas canções beatas religiosas e sem inspiração, a maioria nem composta por brasileiros mas traduzida do original norteamericano, não só dentro de suas igrejas mas mesmo nas ruas, talvez numa tentativa de acabar com a alegria do povo no Carnaval.

Por Rui Martins

Bancada evangélica quer desfiles com oração e bìblia na mão

O novo líder da bancada evangélica, Eli Borges, é um deputado federal do Tocantins que se notalizou, há duas semanas, por ameaçar processar o bloco carnavalesco ou escola de samba corintiana Gaviôes da Fiel, a pretexto de terem sido sacrílegos com o samba-enrêdo Em nome do Pai, dos Filhos, dos Espíritos e dos Santos.

No que teria consistido o sacrilégio? De acordo com o pastor, que é também agropecuarista e tem curso de contador, os sambistas teriam ofendido a chamada Santíssima Trindade, na qual convivem figuras chamadas de Pai, Filho e Espírito Santo, segundo uma decisão do Concílio de Nicéia em 325 depois de Cristo. É o caso de se perguntar por que só no terceiro século cristão se chegou à conclusão de que Deus é só um, mas dividido em três, o chamado mistério da Trindade?

Por que? Pela simples razão de que não havia antes essa idéia de Trindade entre os primeiros cristãos e de que muitos cristãos não aceitavam essa versão teológica. Ou seja, não havia consenso. O debate começou no segundo século cristão e acabaram vencedores os teólogos criadores da Santíssima Trindade. Mas transformada essa teoria em dogma, tornaram-se apóstatas todos quantos dele divergisem, mesmo se fossem bons cristãos. Pode-se mesmo imaginar essa apostasia punida na fogueira.

Teria sido influência dos pagãos, em cujas religiões já existia o conceito de deuses tríplices? No Egito, havia Hórus, Ísis e Osíris; na Grécia, Zeus, Maia e Hermes; na Índia, Brahma, Vishnu e Shiva e, em Roma, Júpiter, Juno e Minerva.

Onde teria sido cometido o sacrilégio ou a ofensa pelos carnavalescos Gaviôes da Fiel? Ainda segundo o pastor Eli Borges, que se investiu da missão de defensor da fé cristã, os foliões macularam a fé dos cristãos desfilando pelas ruas com esse samba enrêdo!

Ah, bom, o sacrilégio não foi cometido dentro de igrejas?

Não, os sambistas desfilavam cantando nas ruas decoradas para o Carnaval e no Sambário? Bom, então neste caso, não houve sacrilégio e nem desrespeito. O ilustre deputado federal precisa deixar de lado a Bíblia e ler a Constituição, na qual se afirma ser o Brasil um Estado laico.

Além disso, nem dentro do cristianismo existe uniformidade a esse respeito. É o caso dos chamados unicistas e de denominações cristãs como a Igreja de Deus do Sétimo Dia e as Testemunhas de Jeová. Na verdade, Eli Borges deve ter um problema com a escola de samba Gaviões da Fiel desde quando, no ano passado, desfilou contra o racismo, fascismo e outras formas de opressão e colocou mesmo no desfile um Bolsonaro Gay.

Mesmo se a bancada evangélica cresceu e transformou uma parte do Congresso em igreja, com culto e orações, desrespeitando a separação entre o poder político e o chamado poder religioso, é bom assinalar não haver ainda no Brasil uma maioria evangélica suficiente para instaurar uma teocracia autoritária no modelo iraniano.

Qualquer bloco carnavalesco pode usar um enredo religioso, se quiser, sem constituir isso um desrespeito. Mas é um desrespeito à Constituição fazer ameaça de processo a um grupo carnavalesco que, usando do sincretismo religioso no Brasil, canta o entendimento e a união entre as crenças, numa espécie de ecumenismo unindo as fés religiosas africanas com as indígenas e com a fé trazida da Palestina e Roma pelos colonizadores.

O Jornal da Bandeirantes com Reinaldo Azevedo praticamente se revoltou contra essa tentativa de controle religioso inclusive da festa popular do Carnaval, fazendo literalmente uma “pregação” contra a tentativa intolerante do deputado líder da bancada evangélica no Congresso de censurar e intervir na inspiração de poetas e compositores de samba-enrêdo numa festa popular.

Felizmente ainda não somos obrigados a cantar só o gospel dos evangélicos, mas o risco existe de muitos Eli Borges, se transformarem numa pressão contra a liberdade de pensamento e de quererem impor seu culto, seu credo e suas canções beatas religiosas e sem inspiração, a maioria nem composta por brasileiros mas traduzida do original norteamericano, não só dentro de suas igrejas mas mesmo nas ruas, talvez numa tentativa de acabar com a alegria do povo no Carnaval. Como disse Reinaldo, “os Gaviôes da Fiel não invadiram nenhum templo religioso para cantar sua música, não condenam ninguém ao inferno, nem à morte e nem à danação”.

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.

Direto da Redação é um fórum de debates publicado no jornal Correio do Brasil pelo jornalista Rui Martins.

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