A Grande Marcha: O negócio da China

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Publicado segunda-feira, 30 de janeiro de 2006 as 15:30, por: CdB

O escritor mineiro Murilo Rubião combinava a submersão de Kafka à profundidade da alma humana, com particular surrealismo, mas servido da preocupação política montanhesa e coerente ironia.

Um de seus enigmáticos contos – O pirotécnico Zacarias – começa com a frase profética, atualíssima: Dos mares da China não mais virão as quinquilharias. É frase que combina com outra, de Napoleão Bonaparte, mais conhecida e inquietante: Quand la Chine s’eveillara, le monde tremblera. Em suma: a China, embora continue exportando chinelas, já está enviando foguetes tripulados ao espaço e vendendo sofisticadas instalações eletrônicas ao mundo inteiro, como as redes inteligentes de telefonia celular GSM e as estações NGN (next generation network). A pirotecnia deixou de ser espetáculo visual, para se tornar afirmação de poder político.

Os chineses encontram-se na contramão do novo liberalismo ocidental. É a inteligente aplicação da dialética. Se o Ocidente prefere a destruição do Estado e a entrega do poder político diretamente aos ricos, a China fortalece o Estado e o transforma em sócio majoritário de todos os empreendimentos econômicos do país. É o corolário da Grande Marcha, com o crescimento econômico batendo todos os recordes internacionais.

Mas não é apenas a China que assusta o mundo. A seu lado, encontra-se a Índia, que também cresce e espanta. Somados, os dois povos representam cerca de 40% de toda a população mundial. E ambos foram colonizados e explorados direta e brutalmente pelos ingleses durante quase um século, até a independência formal, depois da Segunda Grande Guerra. Além disso, tiveram que se confrontar à heterogeneidade interna, com várias etnias e idiomas, o que dificulta a articulação de projetos nacionais de desenvolvimento.

A China e a Índia são menos homogêneas do que a América do Sul – com toda a diferença étnica e cultural de nossos povos. A herança latina e a base cristã de nossas crenças nos permitem identidade cultural básica, não obstante a sobrevivência de religiões ameríndias e africanas, que se harmonizam mediante o sincretismo. Superar essas ligeiras diferenças e as pequenas rivalidades regionais é dever de sobrevivência, e cabe ao Brasil a principal responsabilidade nesse movimento.

Quaisquer que sejam os passos futuros, o primeiro deles deve ser o da recuperação da autonomia do povo brasileiro, depois da vergonhosa adesão do governo Fernando Henrique ao Consenso de Washington. O Brasil, se não tivesse entregado, como entregou, suas empresas estatais aos investidores privados (sobretudo às corporações multinacionais), estaria hoje em condições de participar, vantajosamente, da nova divisão de mercados. Enquanto a China e, em ímpeto menor, a Índia contam com a força de estados nacionais empenhados no projeto estratégico de grandeza, estamos patinando, no retorno ao caminho de desenvolvimento que o governo anterior abandonou. Os índices de crescimento da economia são acanhados, diante dos dragões asiáticos, bem mais agressivos do que os antigos tigres. E, infelizmente, o PT não é partido de sólidas convicções nacionalistas. O cosmopolitismo de São Paulo – onde se situa o núcleo ideológico do partido – com todas as suas virtudes, ameniza, ali, os sentimentos nacionalistas do povo brasileiro, que encontram seus pontos de referência no Rio Grande do Sul, em Pernambuco e em Minas.

A escandalosa privatização das empresas estatais, à parte a provável corrupção do processo usado, trouxe prejuízo ainda maior, ao privar o País de seus instrumentos estratégicos. Perdemos as conquistas tecnológicas que tanto nos custaram, tanto nas telecomunicações, como na química fina e na indústria aeronáutica (com a venda da Embraer), e não dispomos mais de seus lucros, como os da Vale do Rio Doce, para financiar outros projetos. A China já enviou um homem ao espaço, a bordo de veículo que seus cientistas projetaram e fizeram voar; o Brasil se prepara para enviar seu cosmonauta na carona