Democracia, liberdade, justiça

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Publicado segunda-feira, 21 de março de 2022 as 09:05, por: CdB

 

Abid continua: “O problema é que eu nasci no Afeganistão, e todas as pessoas que nasceram em países pobres, elas têm algum problema? Elas são culpadas?”

Por Carolina Mello – de Brasília

Nos escombros da Academia de Platão em Atenas, um grupo de pensadores tenta responder à pergunta título do filme O que é democracia?, um documentário de 2018 dirigido por Astra Taylor, dedicado à investigar os limites e as contradições do modo de governar que a cultura ocidental herdou da polis grega.

Documentário “O que é democracia”

A filósofa Eleni Perdikouri inicia o debate com o que defende ser a questão fundamental da filosofia antiga: felicidade. Em Platão e Aristóteles, a resposta para a felicidade está na cidade. “Uma boa vida é garantida por uma boa cidade”. Para eles, o que torna a cidade boa é a justiça. “Uma boa cidade é uma cidade justa”. Eleni define justiça como algo bom e desejável, pois tem como função primordial manter a cidade unida.

Mas como chegar à justiça, como manter a união na polis? Em A República, Platão tratou dessa questão também por um viés econômico: o que ameaça a unidade da cidade e, portanto, impacta na justiça e afeta a felicidade comum é a disparidade entre ricos e pobres, que divide a cidade em duas e gesta verdadeiras guerras civis.

“O que as pessoas pobres eventualmente farão é que seguirão qualquer demagogo que as prometa derrubar os ricos”, diz Eleni, e aqui chegamos à primeira contradição interna da democracia: sua capacidade de eleger políticos ruins para o povo, ou até mesmo fascistas, engendrando, assim, regimes de exceção a partir do voto da maioria.

Histórico colonial e escravocrata do ocidente

Partindo de uma crítica ao histórico colonial e escravocrata do ocidente até chegar ao capitalismo financeiro, o documentário também questiona se há, hoje, justiça na manutenção de fronteiras entre países, em um mundo globalizado e assolado por crises humanitárias, onde os direitos dos imigrantes, os “sem-polis”, são precários.

Dos gastos bancos de mármore em Athenas para uma zona de refugiados na área do Porto de Piraeus, Abid Muhajir chega a mesma conclusão de Platão. Para a pergunta que a diretora faz aos entrevistados do filme “O que a democracia significa para você?”, o afegão responde sem consultar nenhum livro, a partir do conhecimento da própria experiência de imigrante: “Democracia, em uma palavra, para mim é justiça. Justiça para todos”. Abid continua: “O problema é que eu nasci no Afeganistão, e todas as pessoas que nasceram em países pobres, elas têm algum problema? Elas são culpadas?”, questiona.

Astra observa: “Foi interessante você dizer que democracia é justiça, porque normalmente as pessoas dizem que é liberdade”. Abid rebate: “Liberdade de quê? Machucar alguém? Liberdade de matar alguém? Liberdade de quê?”.

Para a questão da liberdade, o filósofo Cornel West é provocativo ao evocar reflexões da literatura em Dostoiévski e James Baldwin, e chegar à conclusão de que, para a maioria das pessoas, a liberdade é um fardo, o que nos levaria a uma postura evitativa em relação à política, relegando seu manejo às autoridades e instituições. Acontece que, sem o engajamento popular, os aparatos democráticos se tornam anêmicos, a democracia se enfraquece.

As ideologias

O que podem as ideologias gestadas em momentos de intensa despolitização, como os enfrentados nos últimos anos, ao financiar governos ao mesmo tempo populistas e tiranos, já estava anunciado por Platão no livro 1 de A República: “A pior punição por declinar o governo é ser governado por alguém pior do que si”.

Mas, então, o que fazer diante de tantos problemas? “Na prática, em todo lugar que você olha, a democracia está com problemas. O progresso pode acontecer ao contrário, e coisas terríveis aconteceram em nome da democracia”, diz Astra Taylor, ainda nos dois primeiros minutos do documentário.

É a filósofa Silvia Federici quem responde: “Sim, tem sido tão abusado e tão mal aplicado, sabe, comparado com seu significado original, que é o poder do povo, o governo do povo. Mas tantas pessoas lutaram pela realização de uma verdadeira democracia, que de certa forma é importante não abandonar a palavra”.

O diálogo entre Federici e Taylor se dá diante de um mural do século XIV em Siena, na Itália, pintado para ilustrar modelos de bom e mau governo, de acordo com o pensamento vigente à época. Ao longo dos apontamentos de Silvia diante da obra, vamos percebendo que aquelas cenas são, também, uma propaganda dos mercadores e banqueiros que, em 1472, fundariam, naquela cidade, o mais antigo banco em funcionamento do mundo.

Embora no painel dedicado ao bom governante, a cidade pareça próspera e feliz, a justiça é a única virtude feroz, decapitadora de cabeças em volta de uma procissão de criminosos algemados, a exceção dos cidadãos da polis. O que nos leva a perguntar, também, no grande exercício de questionamento socrático que é este documentário: Se a democracia é justiça, o que é a justiça?, ou ainda: Na polis, há justiça para quem?. O filme O que é democracia? pode ser assistido no serviço de streaming Globoplay.

Carolina Mello, é jornalista pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), interessada em política, feminismo, literatura e cinema. Email: carolinagracamello@gmail.com  Twitter: @mellocomdoisele.

As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil

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