A mídia e as máscaras da História

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Publicado domingo, 17 de dezembro de 2006 as 12:31, por: CdB

Meu amigo Saul Leblon continua em seu bom combate contra as distorções da mídia, e agora descobriu também aquela “M. country” dos cigarros. Confira:

“As idéias podem organizar os fatos, ajudar a entendê-los, emprestar-lhes a força dos argumentos, mas não podem substituí-los. Os fatos caminham à frente das idéias.

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Reconhecer essa hierarquia ajuda a entender o horizonte enevoado do nosso tempo. Faltam-lhe marcadores históricos suficientemente fortes para filtrar conceitos, superar ambigüidades e desnudar conveniências que balizam desde discursos políticos a narrativas supostamente “neutras” da mídia. O conjunto forma essa babel de autismo social flagrada por Bernardo Kucinski em seu recente artigo em CM, “A Babel é aqui”.

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O que ele ressalta é a miséria da política e do jornalismo. Nas condições atuais de subordinação absoluta à lógica dos mercados, a grande imprensa não poderia estar a salvo dessas conseqüências, sendo ela um dos instrumentos ativos das suas causas.

Guardadas exceções de praxe, a grande imprensa tem sido pródiga em mascarar, muito mais do que em decifrar os acertos e mesmo os erros do governo Lula, que ela distorce ao trocar a investigação pela lente rudimentar do maniqueísmo. As distorções não se refletem apenas no ambiente da grande imprensa. Esparramam-se também por veículos de natureza pública quando estes, olimpicamente, declinam por exemplo de incluir a mídia na pauta, omitindo-se diante de um protagonista-chave para compreender a natureza e a extensão dos conflitos em andamento. A verdadeira lealdade ao leitor consiste em oferecer-lhe nossas coordenadas. O mirante das nossas idéias. Sobre elas repousa nosso olhar. Ao pretender oferecer-lhe fatos limpos sem a “mácula” da interpretação, da opinião ou da análise-crítica o que se faz é mascarar mais do que revelar.

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Somos todos filhos da História. Disso nem Marx escapou. O inspirador do comunismo só se tornou comunista de fato depois da Comuna de Paris. Embora tenha escrito o Manifesto antes dela, foi a partir da experiência prática da revolução de 1871/72 que socialistas como ele, e muitos libertários sinceros, entenderam a necessidade de disputar o poder de Estado para consolidar uma nova hegemonia social. Suas idéias plasmaram-se assim aos fatos e vice-versa. Desse entroncamento nasceu a certeza de que as idéias pertencem ao mundo através da ação.

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“As circunstâncias fazem o homem, na mesma medida em que este faz as circunstâncias”. Ao menos este minúsculo legado marxista poderia figurar num canto discreto do monitor, à esquerda da tela onde jornalistas transcrevem diariamente sua coleta de informações. A confrontação cotidiana entre o enunciado e o que anunciam talvez ajudasse a concluir que, a rigor, a consciência do mundo só se completa no enlace com o próprio mundo. Não há observador neutro. Nas relações humanas não há conhecimento dissociado de envolvimento social. “Não foi a Internacional que levou os operários à greve; foram as greves que levaram os operários à Internacional”, respondeu Marx à imprensa burguesa que o acusava de manipular e incutir “idéias” totalitárias na cabeça dos trabalhadores. Isso, em 1864. Como se vê, a coisa vem de longe. E os acontecimentos mais recentes não ajudaram a dissipá-la.

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O Muro de Berlim durou 28 anos. Caiu há exatos 17. Foi o marcador histórico de uma ruína bem maior que os seus 66,5 quilômetros de extensão, cujo desabar silencioso começou muito antes da noite de 9 de novembro de 1989. Ainda hoje tateamos por entre os escombros visíveis e a poeira renitente dessa pilha desordenada de contingências e escolhas, buscas e desencontros que marcaram a trajetória da esquerda no século XX. A melancolia apenas confirma que só se supera aquilo que se substitui. Ainda não substituímos.

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Os anos 90