Rio de Janeiro, 22 de Novembro de 2024

O jornalista era espião

Arquivado em:
Terça, 29 de Setembro de 2015 às 13:23, por: CdB

Por Sheila Sacks, do Rio de Janeiro:

DIRETO-CONVIDADO10.jpg
Como vida de correspondente de guerra pode ser como romance de espionagem

Nascido na Alemanha do após guerra, Wilhelm Dietl era um jornalista experiente e respeitado, com vários livros no currículo, quando em 2005 descobriu-se que ele havia sido um agente do Serviço de Inteligência Federal (BDN, na sigla em alemão) por mais de uma década. Especialista em geopolítica do Oriente Médio, autor de reportagens investigativas em zonas de conflito, notadamente em países como Irã, Iraque, Afeganistão, Paquistão, Líbia, Líbano, Israel, Egito e Síria, Dietl contava com espaços preciosos para as sua matérias em importantes veículos de comunicação, como os semanários “Stern” e “Focus”. Mas tudo mudou quando seu nome apareceu em um relatório do BDN como sendo o de um espião remunerado de codinome “Dali” que exerceu a função de informante do órgão no período de 1982 a 1993.

Envolvido no escândalo de espionagem que mobilizou a mídia e a opinião pública alemãs, resultando em uma comissão parlamentar de inquérito, Dietl sempre negou que espionava ou fornecia informações contra os seus colegas de profissão, apesar de admitir que por onze anos foi um agente pago do serviço secreto alemão. Ele revela que seu trabalho consistia em coletar informações e recrutar agentes para o BDN, principalmente na região do Oriente Médio, e por conta disso ele se arriscou e enfrentou situações de perigo.

Em 2007, em uma longa entrevista ao jornalista israelense Yossi Melman, do jornal “Haaretz”, Dietl disse que foi cooptado para trabalhar no BDN por conta de um trabalho jornalístico que realizava em 1982 sobre o Afeganistão. Depois de um encontro com o porta-voz da agência em um subúrbio de Munique, onde fica a sede do BDN, ele foi convidado a trabalhar para o órgão colhendo informações e elaborando relatórios, mantendo, porém, a sua rotina de jornalista especializado em questões de geopolítica.

Dietl ganhava mil marcos (cerca de 500 euros) por relatório de dez páginas, além de ter as suas passagens aéreas e as diárias de hotéis pagas a cada missão, que podia ser em Paris, entrevistando o presidente deposto da Argélia, Ahmed Ben Bella (1918-2012), ou em Damasco, conversando com o ministro de Defesa da Síria, Mustafa Tlass, que exerceu o cargo de 1972 a 2004. O jornalista alemão também revelou que recrutou para o BDN dois agentes de um país árabe fronteiriço a Israel que lhe forneceram uma lista de terroristas da organização extremista Fatah-CR (Conselho Revolucionário do Fatah), comandada por Abu Nidal (1937-2002), responsável por dezenas de atentados, mortes e sequestros em 20 países nas décadas de 1970 e 1980.

Experiência como correspondente

Anos antes de entrar para o serviço secreto, o jornalista alemão já tinha estado no Irã, acompanhando a Revolução Islâmica, e se encontrado com o aiatolá Khomeini. No Líbano, falou com o presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat (1929-2004), e com membros da organização fundamentalista Hezbollah. Durante a guerra do Afeganistão contra a ocupação soviética (1979-1989), Dietl posou ao lado do comandante rebelde Gulbuddin Hekmatyar, que se tornou primeiro-ministro do país na década de 1990 e depois se aliou ao movimento fundamentalista islâmico Taliban e à rede terrorista Al-Qaeda.

Essas e outras incursões de Dietl pelo mundo muçulmano em ebulição, focalizadas em primeira mão nas reportagens que traziam os bastidores dos fatos e as palavras dos principais líderes envolvidos – deixando entrever a existência de uma agenda pessoal de contatos e fontes de informação superlativas –, provavelmente foram determinantes para o convite do BDN ao jornalista. Ele afirma que no início hesitou, mas que depois concordou com a proposta, imaginando que estaria servindo ao país.

O trabalho como jornalista funcionou como excelente cobertura, segundo Dietl, facilitando o seu acesso às informações e às pessoas, como no caso do jornalista sírio Louis Fares, amigo pessoal do presidente Hafez al-Assad (1930-2000). O político sírio que governou o país por quase 30 anos, pai do atual presidente Bashar al-Assad, enviou Fares em missões clandestinas à França e Dietl dá a entender que essa amizade e de outras fontes sírias lhe renderam importantes documentos sigilosos, os quais enviava para seus contatos na Alemanha.

No Líbano, Dietl manteve contato com fontes que se relacionavam com militantes do grupo Hezbollah e da Organização para Libertação da Palestina, a OLP. Ele conta que em Beirute ouviu relatos dessas fontes sobre o assassinato de Ali Hassan Salameh, um dos líderes da organização Setembro Negro, levado a termo por uma agente do Mossad, o serviço secreto israelense. Chefe operacional do atentado que matou onze atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique, em 1972, Salameh foi morto em 1979, enquanto dirigia em uma rua de Beirute, após uma caçada que durou sete anos. Coube à agente conhecida como “Erica Chambers” acionar por controle remoto a bomba instalada na viatura. Dietl confessa que ficou fascinado pela história dessa agente secreta, inglesa de nascimento, que ingressou no Mossad aos 21 anos, quando estudava na Universidade Hebraica de Jerusalém.

De posse de informações sigilosas obtidas com integrantes da OLP que realizaram investigações sobre os antecedentes do atentado, refazendo os rastros de “Chambers” em endereços na Alemanha e em Genebra, Dietl escreveu em 1993 o livro Die Agentin des Mossad – Operation Roter Prinz (A Agente do Mossad – Operação Príncipe Vermelho, em tradução livre). Mas anos antes esses dados já tinham sido repassados pelo jornalista ao serviço secreto alemão. Em outra operação no Líbano, ainda acobertado pela atividade de jornalista, Dietl conseguiu obter com agentes e fontes do Hezbollah documentos sobre os vários sequestros de diplomatas e outros funcionários ocidentais levados a cabo pelo grupo na década de 1980.

Espiões, inteligência e geopolítica

Durante o período em que foi agente secreto, Dietl amealhou o equivalente a 600 mil marcos. Quando se desligou do BDN por divergências com o órgão, ele conta que até sentiu alívio, pois admite que estava com os “nervos em frangalhos”. Ele se reunia com terroristas, comandantes militares, representantes de serviços de inteligência e políticos na condição de correspondente, com a incumbência de escrever reportagens sobre os acontecimentos no Oriente Médio. Entretanto, o ofício paralelo de espionar em cidades como Teerã, Amã ou Damasco era desgastante do ponto de vista psicológico, já que Dietl se utilizava do recurso do suborno envolvendo funcionários oficiais para conseguir documentos e material de interesse da agência de inteligência alemã.

No início de 1982, chegou a ser detido pelas forças de segurança sírias na cidade de Hama, ao norte de Damasco, durante os sangrentos confrontos com o grupo da Irmandade Muçulmana, que se rebelou contra o governo central. Mas conseguiu escapar mostrando a seus interrogadores a gravação da entrevista que teve com o ministro de Informações do país e mentindo acerca de um suposto encontro agendado com o presidente Hafez Assad (que não pode ser checado porque o serviço de telefonia estava interrompido). Esse episódio na Síria e mais as constantes viagens de Dietl ao Oriente Médio em função das pesquisas que realizava sobre as organizações secretas do Islã para o livro Holy War (Guerra Santa), publicado em 1983, também foram decisivos para a sua proximidade com os oficiais do BDN. “Estou orgulhoso do que fiz”, declara Dietl. “Não tenho que pedir desculpas. Eu agi acreditando em valores e ideais; denunciei terroristas perigosos, abortando operações e salvando vidas humanas.”

Falando sobre a sua contratação pelo serviço secreto alemão em 1982, Dietl admite que os tempos mudaram. “Hoje, as organizações de espionagem enviam os seus agentes a zonas de conflito sob o disfarce de jornalistas, o que não ocorreu comigo, pois eu era um jornalista de fato”, afirma. Suas memórias sobre esse período podem ser conferidas no livro Deckname Dali: als agente des BND im Nachen Osten (Codinome Dali: Relatórios de um agente do BDN, em tradução livre), lançado em 2007, dois anos após o seu segredo vir à tona. A esse respeito, o ex-correspondente da revista Time, David Halevy, não se mostra surpreendido com a proximidade de jornalistas com as agências de inteligência. Amigo de longa data de Dietl, Halevy nasceu em Jerusalém e por mais de quinze anos trabalhou na revista americana. Para ele, a fronteira entre o jornalismo e a espionagem é muito turva. “O jornalista pode se achegar das fontes e pagar pelas informações sem levantar suspeitas”, avalia (“Cover Story”, publicado no ‘Haaeretz Magazin’, em 14/8/2007). 

Autor do livro investigativo Inside the P.L.O. (Dentro da OLP, em tradução livre), lançado em 1990 e escrito em parceria com o americano Neil C. Livingstone, o israelense explica que o jornalista que cobre assuntos que envolvem agências de espionagem está sempre de alguma forma negociando informações. “Algumas reportagens são melhores que muitos relatórios de inteligência”, enfatiza. Ele colheu material em seis agências de inteligência (três do Ocidente e três do Oriente Médio) e preservou as identidades das mesmas, apesar de questionado por essa atitude. Uma das informações citadas, oriunda de um serviço secreto árabe, fala a respeito dos 6 a 8 bilhões de dólares que Arafat controlava sozinho por meio de empresas de fachada e fundos em bancos espalhados pelo mundo, inclusive nos Estados Unidos.

Um tema que Dietl domina e volta à carga em 2010 ao publicar Shadow Armies: The Secret Services of the Islamic World (Exércitos da Sombra: Os Serviços Secretos do Mundo Islâmico, em tradução livre), focalizando as atividades de espionagem clandestina do Irã dos aiatolás (dentro e fora do país), Iraque, Egito, Líbia e Síria, assim como as ligações financeiras dessas organizações com os grupos armados Hezbollah e Hamas. É o seu décimo oitavo livro e, como a maioria, versando sobre espiões, agências de inteligência e a geopolítica de guerra do Oriente Médio. Uma experiência que já o havia levado a escrever, em 1997, o livro Operation Eichmann: Pursuit and Capture (Operação Eichmann: Perseguição e Captura), em parceria com o agente do Shin Bet (o serviço se segurança de Israel) Zvi Aharoni (1921-2012). A obra detalha aspectos da localização e captura do oficial nazista Adolf Eichmann na Argentina, em 1960.

Amizade e segredos 

No Brasil, o jornalista Claudio Tognolli, diretor-fundador da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), professor da USP e autor de livros polêmicos (‘Mídia, Máfia e Rock and Roll - 50 anos a mil’; ‘Assassinato de reputações’, entre outros) é incisivo ao traduzir o envolvimento do jornalismo com o ambiente da inteligência e espionagem. “Todo mundo que cobre inteligência tem algum amigo que trabalhou ou trabalha para a CIA ou para a KGB.” Ex-correspondente da “Folha de São Paulo” nos Estados Unidos, Tognolli também escreveu para a revista “Veja”. Em entrevista ao blog “Brasil no mundo”, de Fábio Pereira Ribeiro (‘Exame.com’, em 20.03.2014), o jornalista fala de sua amizade com o delegado paulista Mauro Marcelo de Lima e Silva, formado no FBI, e nomeado por Lula, em 2004, para comandar a Abin (Agência Brasileira de Inteligência).

Por conta dessa amizade, em 2006 ele foi convocado por Mauro para uma missão humanitária no Iraque, em parceria com a CIA, que acabou não se consumando por motivos pessoais (um colega do ‘New York Times’ o alertou para o fato de que os sunitas o matariam ao verem seus braços e costas tatuados em hebraico). Ainda de acordo com Tognolli, antes de se tornar diretor-geral da Abin, Mauro Marcelo era a sua melhor fonte, além de um grande amigo. “Mauro me contava segredos inacreditáveis”, relembra. “Eu sempre os enterrava. Mas repetia a ele: ‘Doutor, não me conta isso porque em jornalismo eu acato a frase do Oscar Wilde (escritor e dramaturgo irlandês do século 19): “Posso resistir a tudo, exceto à tentação.”

Uma frase que se aplica de alguma forma a maioria das reportagens investigativas que se apoia em documentos e dados de fontes sigilosas, muitas vezes obtidos no interior dos órgãos de governo. Um caminho sinuoso onde a amizade e a confiança mútuas flexibilizam regras e conceitos. Ano passado, “O Globo” publicou uma reportagem investigativa do jornalista José Casado acerca da conexão islâmica no Cone Sul que prima pelos detalhes das informações. A matéria reconta os preparativos para os atentados à embaixada de Israel em Buenos Aires e ao prédio da Amia (Associação Mutual Israelita da Argentina), em 1992 e 1994. Casado expõe a fragilidade de atuação dos órgãos governamentais na Tríplice Fronteira e “a relutância dos governos da América do Sul em admitir a possibilidade de conexão regional com a novidade do terrorismo político-religioso em escala global” (“A Conexão Brasil no Extremismo Islâmico”, em 13/07/2014). Um texto extraordinário, de leitura imperdível, melhor do que qualquer relatório “confidencial” da CIA, reforçando a sensação de que a linha de demarcação entre o jornalismo e a espionagem é uma questão de opinião.

Daí, talvez, a recente iniciativa do Departamento de Defesa americano de incluir os profissionais da mídia no manual de 1.176 páginas que normatiza os procedimentos e conduta em tempo de guerra, visto que em tempo de paz o fluxo de informações deve seguir a normalidade democrática. Divulgado no início de agosto, o documento enquadra os jornalistas que cobrem conflitos armados na categoria de “beligerantes sem privilégios”, a mesma destinada a espiões e terroristas. Segundo o texto, apesar de os jornalistas serem geralmente considerados civis e terem direito à proteção dada a civis, “a transmissão de informação (de uso imediato em operações de combate) pode se constituir participação nas hostilidades”. O manual admite que os governos possam tomar medidas de segurança para que os jornalistas não revelem informações confidenciais para o inimigo.

O documento do Pentágono foi criticado pelo “New York Times” (10.08.2015) que em um editorial zangado advertiu que se a medida for colocada em prática causará graves danos à liberdade de imprensa. Lembrou ainda que dos 61 jornalistas mortos em 2014, a maior parte perdeu a vida cobrindo guerras, segundo o Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ).

Sheila Sacks, jornalista formada pela PUC-RJ sempre trabalhou em assessoria de imprensa.Tem artigos publicados nos sites Observatório da Imprensa e Rio Total. Desde 2009 mantém o blog “Viajantes do tempo”.

Direto da Redação é um fórum de debates, publicado diariamente, editado pelo jornalista Rui Martins.

Tags:
Edições digital e impressa
 
 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo