Rio de Janeiro, 21 de Novembro de 2024

A injustiça de Dilma no "caso Celso Lungaretti"

Arquivado em:
Quinta, 17 de Agosto de 2017 às 15:24, por: CdB

Existe hoje um "caso Celso Lungaretti" dentro da esquerda brasileira. Injustiçado pela ex-companheira de resistência na VPR Dilma Rousseff, marginalizado pelos blogueiros petistas, na verdade Celso simboliza a verdadeira esquerda não comprometida. E deve, por isso e pelo seu passado e presente de lutas, ter o nosso reconhecimento e apoio.

Por Rui Martins, de Genebra:

DIRETO-RUI-MARTINS.jpg
A esquerda brasileira deve ser solidária com Celso Lungaretti

Existe hoje um "caso Celso Lungaretti" dentro da esquerda brasileira. Os mais jovens não sabem quem é Lungaretti e vamos resumir: líder secundarista quando houve o golpe militar no Brasil, Celso Lungaretti entrou na Vanguarda Popular Revolucionária, VPR, com 18 anos, com 19 anos foi preso e passou por torturas, dasquais tem sequelas até hoje. VPR é o mesmo movimento ao qual pertenceu a ex-presidente Dilma Rousseff, podemos dizer que ambos eram companheiros de luta na resistência.

Para não cometer erro, transcrevo a Wikipedia sobre Lungaretti:

"Preso em abril de 1970, foi acusado injustamente como delator da área de treinamento da VPR em Registro/SP porque sua organização preferiu preservar os dirigentes do Comando Nacional que a revelaram sob torturas, culpando ele e outro militante secundarista nos documentos e versões oficiais. Após grandes coações psicológicas e torturas físicas, foi obrigado a escrever manifestos e dar entrevistas renegando seu passado revolucionário e criticando a esquerda armada ainda em 1970.

Conseguiu restabelecer a verdade dos fatos no final de 2004, a partir de um relatório secreto militar que veio a público e da intervenção em seu favor do historiador (comunista e também resistente)  Jacob Gorender, que o inocentou dessa acusação em carta publicada na Folha de S. Paulo.

Em 2005, Celso lançou o livro Náufrago da Utopia: Vencer ou morrer na guerrilha aos 18 anos.

Desde então atua como blogueiro, defendendo os ideais revolucionários, os direitos humanos e o exercício do pensamento crítico, assumindo causas como a do escritor italiano Cesare Battisti (como porta-voz do Comitê de Solidariedade).

Recentemente (2011), Celso Lungaretti foi inocentado pela justiça em São Paulo em processo movido contra ele pelo jornalista Boris Casoy."

Restabelecida a democracia, já fora da prisão há algum tempo, Lungaretti lutava para sobreviver. Com a Lei da Anistia, e restabelecida a verdade a seu respeito, Celso Lungaretti obteve parte de uma indenização pelos males sofridos fisicamente e na sua carreira de jornalista. Mas ficou faltando uma parte e para recebê-la entrou com um processo, no qual conseguiu ganho de causa, como o próprio Lungaretti explica no texto que segue logo embaixo.

Entretanto, no momento de execução da decisão a ele favorável, o governo petista, através da Casa Civil, encarregou a Advocacia Geral da União, AGU, de recorrer da sentença, para adiar, como vem sendo adiado já há dez anos, o pagamento de sua indenização, embora todos seus companheiros da resistência armada já tenham sido indenizados.

Sofrendo problemas econômicos com sua família, Lungaretti chegou a apelar à presidente Dilma Rousseff, tendo recebido a informação de que a presidente não poderia interferir, por se tratar de questão judiciária em andamento, quando na verdade bastaria ter sido retirado o recurso oposto pela Advocacia Geral da União.

Por que não funcionou a solidariedade entre companheiros com Lungaretti? Provavelmente em consequência das posições críticas de Lungaretti, um eterno revolucionário, às posições do governo Dilma Rousseff. Num espetáculo doloroso de intolerância e de dogmatismo inaceitável, os textos críticos, mas por isso mesmo importantes, de Celso Lungaretti passaram a ser rejeitados pelos blogueiros da esquerda padronizada, reproduzidos apenas pelo Direto da Redação, do qual sou editor.

Trata-se de um "caso Celso Lungaretti" porque ao se negar a se submeter à cartilha do governo petista (e muitos blogueiros eram mesmo pagos para isso), a chamada "esquerda brasileira" virou as costas ao antigo resistente, negando-se a pleitear junto ao governo um tratamento humano entre companheiros contra a discriminação mais parecida com vingança, pois Lungaretti não sabe se dobrar e entoar o hino dos louvores exigido.

É lamentável que na sua luta, o companheiro Celso Lungaretti, só encontre um apoio, o de Dalton Rosado, também injustiçado pelo PT e o meu. Escrevo daqui de longe, na esperança de que outros companheiros se unam ao Celso Lungaretti na sua luta, cuja figura de combatente mesmo hoje doente, de indomável, só pode enriquecer, com seus apelos ao debate e com suas críticas, o pensamento de esquerda no Brasil.

Rui Martins - segue o apelo do próprio Celso Lungaretti à advogada da União -

CELSO LUNGARETTI: CARTA ABERTA À ADVOGADA GERAL DA UNIÃO.

 
Ilma. Sra.
Grace Maria Fernandes Mendonça
Advogada Geral da União
Brasília - DF
 
Prezada senhora,
 
em 1970, aos 19 anos de idade, tive meus direitos humanos e civis duramente atingidos pelo arbítrio que se estabelecera no País: quase morri sob torturas; meu tímpano foi estourado, o que me causou perda de audição e labirintose pelo resto da vida; e fui coagido, em circunstâncias extremas, a uma exposição negativa que me tornou alvo de estigmatização pelas décadas seguintes, colocando-me em grande desvantagem na carreira profissional e afetando meu convívio social.

Já lá se vão 47 anos que ocorreram os fatos geradores de tais lesões aos meus direitos; e, mesmo assim, continuo à espera de receber integralmente a reparação que o Estado brasileiro me concedeu, por meio de portaria do ministro da Justiça, em outubro de 2005.

Isto se deve a uma postura simplesmente inexplicável e injustificável da Advocacia Geral da União, que tem me combatido como um inimigo a quem lhe coubesse ou derrotar, ou (adiando indefinidamente o desfecho da pendência) levar ao amargor e ao desespero.

Isto porque as normas da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça estabeleciam que, quando houvesse indenização retroativa a ser paga, a União deveria fazê-lo no prazo de 60 dias.

Após esperar em vão durante 15 meses, entrei com mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça (0022638-94.2007.3.00.0000) e a AGU, no exercício de suas atribuições, o contestou, embora fosse a chamada missão impossível: o débito já fora assumido pela União e as condições em que deveria ser honrado estavam definidas com total clareza. 

Não obstante, a União primeiramente o ignorou de forma olímpica, depois impôs aos credores um pagamento em parcelas mensais (que deveriam ser zeradas até o último dia de 2014) altamente desvantajoso e até humilhante, pois não se tratava de uma esmola pela qual devêssemos mostrar humilde gratidão, mas sim da penitência de um Estado que se prostrou durante duas décadas a tiranos, deixando-nos entregues a carniceiros e permitindo que nossas vidas fossem feitas em frangalhos.

A grande maioria dos anistiados (muitos milhares), temendo retaliações, condescendeu. Sobraram umas poucas dezenas que insistiram em ver respeitado seu pleno direito. Eu mantive o mandado de segurança que já estava tramitando e acabei sendo mesmo extremamente retaliado: meu processo se tornaria uma história sem fim, como consequência da conduta da AGU (além, é claro, da lerdeza característica da Justiça brasileira). 
O julgamento do mérito da questão só ocorreria quatro anos depois, em 23/02/2011, quando todos os ministros concederam a segurança, acompanhando o voto do relator Luiz Fux.

A AGU, no entanto, insistiu em tentativas de mudar a decisão, sem reais possibilidades de êxito, como se evidenciou nos julgamentos que elas suscitaram: em 26/11/2014 e 08/04/2015, meu direito foi confirmado, sempre por unanimidade.

Finalmente, por meio de recurso extraordinário, a AGU conseguiu que o desfecho do meu processo individual no STJ, iniciado em fevereiro/2007, fosse colocado na dependência da decisão de um processo coletivo cujos autores eram outros (2007/99245) e que tramitava paralelamente no Supremo Tribunal Federal desde junho de 2006. Isto somente serviu para alongar minha agonia, pois a decisão do STF, no final do último mês de novembro, seria também unânime... e incisiva, conforme se constata na ata:
1) Reconhecido o direito à anistia política, a falta de cumprimento de requisição ou determinação de providências por parte da União, por intermédio do órgão competente, no prazo previsto nos arts. 12, § 4º, e 18, caput e parágrafo único, da Lei nº 10.599/02, caracteriza ilegalidade e violação de direito líquido e certo;  
2) Havendo rubricas no orçamento destinadas ao pagamento das indenizações devidas aos anistiados políticos e não demonstrada a ausência de disponibilidade de caixa, a União há de promover o pagamento do valor ao anistiado no prazo de 60 dias... 
Não relatarei, para não soar piegas, todo o padecimento que causou, a mim e a meus dependentes, uma duração tão aberrante em se tratando de um mandado de segurança. 

Mas, devo enfatizar a extrema desigualdade de forças entre um cidadão que luta (como reconheceu o STF) por seu direito líquido e certo e a equipe de eminentes juristas que, a serviço da União, utilizou todo seu arsenal jurídico para protelar o desfecho mais do que óbvio; o despropósito em haver sido dada continuidade à batalha legal mesmo depois de os anistiados que concordaram com o parcelamento terem seus débitos zerados, o que caracteriza a imposição de tratamento desigual a iguais; e o próprio fato de que, em todos os procedimentos jurídicos, não tem sido levada em conta a prioridade que a Lei concede aos idosos (deveríamos ser poupados do estresse causado por duração tão excessiva de um processo, com risco até de morrermos antes de vê-lo finalizado).

Em nome do espírito de Justiça que deve também nortear a atuação da AGU e levando em conta que os encaminhamentos relatados ocorreram antes de sua ascensão a Advogada Geral, faço-lhe um apelo: tome as providências ao seu alcance para abreviar o meu sofrimento. que já durou muito mais do que deveria.

Nosso maior patrimônio, que perdura após nossa passagem pela vida, é a imagem e o exemplo que legamos aos pósteros. Tenho a esperança de que, entre omitir-se face à injustiça ou acudir um injustiçado, a Sra. tomará a decisão correta.

Respeitosamente,
CELSO LUNGARETTI
Em: 14/08/2017    
 

DALTON ROSADO: CARTA ABERTA À ADVOGADA GERAL DA UNIÃO.

 
São Paulo, 14 de agosto de 2017.
 
À
AGU – Advocacia Geral da União
ATT. da MD Dra. Grace Mendonça
Brasília – DF
 
Prezada Senhora, 
 
a defesa da União, obviamente, não significa o patrocínio judicial de injustiças e, muito menos, a protelação do cumprimento de sentenças judiciais por meio de intermináveis recursos em causas cujo mérito esteja sobejamente apurado. Assim, qualquer argumento protelatório numa causa humanitária como a que abaixo nos referimos, mais não é do que a corroboração do cometimento de uma injustiça praticada pelo Estado ao tempo do regime de exceção. O Estado de Direito não deve ser consentâneo com o Estado de exceção.
 
O caso Celso Lungaretti, relativo à indenização de anistiado político com lesão irreversível (processo 99.245, ano 2007), com mais de 10 anos de tramitação, já percorreu todas as instâncias recursais obtendo provimento por unanimidade em todas elas, além de ter percorrido, também, e com idêntico sucesso, instâncias paralelas (mandado de segurança 0022638-94.2007.3.00.000, relator Ministro Lux Fux, sob a presidência do Ministro Teori Zavascki), sem que o seu direito à indenização seja efetivamente exercido.
 
Douta Produradora, 
 
Não deixe que o arbítrio do regime de exceção encontre guarida na vigência do Estado de Direito sob o manto de uma judicialização processual que contraria todo o sentido de responsabilização do Estado pela prática de arbitrariedades praticadas por seus agentes auto-instituídos no poder pela força num tempo de obscurantismo.       
Não deixe que pretensas prioridades econômicas do Estado, próprias a um período de depressão econômica, sejam instrumentalizas para o descumprimento de decisões judiciais que refletem a responsabilidade estatal, principalmente quando este Estado esteve nas mãos do arbítrio, porque a compreensão que devemos ter é a de que a pessoa do governante deve estar sempre em plano inferior àquilo que deve representar o governo do Estado subvencionado pelo povo por meio dos impostos. 
 
Consideramos que a função da Advocacia Geral da União não é defender o Estado em razão de suas dificuldades econômicas causadas na maior parte por um modo de produção que se tornou anacrônico por suas próprias contradições funcionais, agravadas pela corrupção praticada por agentes públicos cujos números bilionários afrontam a dignidade dos cidadãos comuns e daqueles que, amparados por decisões judiciais, se veem privados do gozo dos seus direitos amplamente discutidos e morosamente decididos.
 
Celso Lungaretti tem sido duplamente atingido em razão de sua luta pelos direitos humanos ao longo de sua existência, seja pelas sequelas físicas e psicológicas de que foi vitima, ou seja, ainda, pela segregação profissional própria a quem não se dobra aos interesses do capital, combatendo sem conciliação a barbárie proporcionada pela dinâmica de uma lógica social segregacionista, ou ainda, combatendo os equívocos e desvios da esquerda com coragem e apontando as correções de rumo que julga ser necessárias. 
 
É em razão da solidariedade humana a um combatente que assino a presente carta aberta de modo a que fique explicitado o nosso inconformismo com a injustiça contra justamente uma pessoa que se coloca corajosamente ao lado dos que sofrem injustiças.

Sem mais, reitero meus protestos de respeito e consideração.
 
 
 
 

Cordialmente, 
 
Dalton Rosado 
(articulista e advogado)
Tags:
Edições digital e impressa
 
 

Utilizamos cookies e outras tecnologias. Ao continuar navegando você concorda com nossa política de privacidade.

Concordo