Dilma, PT, crise e desconstrução do país

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Publicado Segunda, 28 de Setembro de 2015 às 13:55, por: CdB
Entrevista com Moysés Pinto Neto,  de Porto Alegre, por Patrícia Fachin:
“No ‘mundo real’ temos um governo que tem no seu ministério os bancos, as oligarquias políticas e os latifundiários, mas no ‘mundo discursivo’ ele supostamente seria o front de resistência atacado por tais sujeitos”, constata o pesquisador.
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Uma importante entrevista que dá o fio do novelo da atual crise brasileira
(Decidimos publicar esta entrevista por sua importância na interpretação do atual momento brasileiro, onde o governo e o PT aplicam o jogo do faz-de-conta mascarando a realidade, dificultando a leitura mesmo a intelectuais e estigmatizando quem se atreve a divergir. Nota de Rui Martins, editor) O que se percebe, “para além do conflito político” atual, é que o “Brasil está em desconstrução”, diz Moysés Pinto Neto à IHU On-Line.
Na entrevista concedida por e-mail, ele enfatiza que “há duas maneiras de ler” a crise atual. A primeira, frisa, “mais comum”, tem como chave de leitura a relação entre “o empresariado, a grande mídia e o sistema político”, e a interpretação de que a crise econômica “devida aos altos gastos governamentais” exige “mudanças fiscais e contenção de despesa pública”.
A segunda possibilidade de entender a crise, explica, está diretamente relacionada com mudanças que ocorreram a partir de 2013, quando o governo da presidente Dilma começou a ficar desgastado: “2013 marcou um evento traumático, um acontecimento que perturbou a política brasileira e deu início a um processo que cozinha em fogo baixo. Ele aponta para uma nova organização da política que circula entre a rua, as instituições e o mundo digital, que envolve um tipo de ativismo mais potente por parte da população, uma relação significativa entre a hiperconectividade do mundo atual - e o Brasil está em destaque no quesito - e uma hiperpolitização, seja para qual lado for”.
Somado a esse novo cenário, pontua, a crise política também é uma “crise de crédito” em relação ao governo da presidente Dilma. “Uma vez comprovado que a ‘palavra’ de Dilma Rousseff não valia nada, já que ela negou os números negativos durante a campanha e atacou virulentamente seus adversários pelas medidas que mais tarde ela própria implementaria, sua legitimidade foi desaparecendo e, com isso, tornando-se mais patente a crise política”. Na avaliação de Neto, as análises que propõem uma “virada à esquerda” são ilusão, porque o “próprio PT admitiu a austeridade, sabendo que depende dela para se conservar no poder até o fim do mandato. É desonestidade intelectual continuar afirmando que essa virada vai acontecer, já que não há nenhum - absolutamente nenhum - sinal disso”. Ao invés de esperar uma “mudança” do governo, pontua, “o que os movimentos sociais podem ainda cobrar do governo, e acho que devem o fazer, é a institucionalização das conquistas sociais dos últimos anos”. Moysés Pinto Neto é graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutor em Filosofia nessa mesma instituição. Leciona no curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil - Ulbra Canoas. Segue a entrevista - Que análise geral faz da origem da crise política atual?
Moysés Pinto Neto - A crise política atual é resultado do desgaste e enfraquecimento do governo petista, que vem ocorrendo desde 2013. Até aquele momento, apesar da subida de tom que a esquerda mantinha, terminando com a ocupação das ruas, a aprovação era grande e o "centrão" peemedebista não tinha interesse em enfrentar o PT. A estratégia antipolítica de Dilma vinha funcionando e o "pacto conservador" inaugurado pelo lulismo prosseguia de vento em popa, focando-se no "gargalo" da infraestrutura. Em 2013, contudo, os atingidos pelo projeto neodesenvolvimentista saem às ruas para mostrar sua indignação contra a precariedade do transporte público, o investimento desenfreado no automóvel, a transformação do modelo de cidade baseada na gentrificação, a violência da polícia e a falta de intensificação da democracia, entre outras pautas. Tudo isso se aprofundará no ano seguinte, com a Copa do Mundo e sua articulação que hoje, mais claramente que nunca, mostra seu caráter de empreendimento mafioso que vampiriza os chamados "mercados emergentes". Ao mesmo tempo, a universalidade das pautas extrapola o campo tradicional da esquerda, sendo permeável à modulação pelo imaginário mais associado à direita. Fortalece-se o pensamento liberal e a ideia de um Estado inchado, corrupto e ineficiente extorquindo dinheiro "das famílias" ou "dos empreendedores". A incapacidade de decolagem do neodesenvolvimentismo - falarei disso adiante - vai provocar uma lacuna que permite o ressurgimento do imaginário da austeridade, da diminuição do tamanho do Estado e da ideia de que a saída é pela direita. A radicalização de alguns movimentos sociais também produziu a estridência reativa, com o surgimento de focos autoritários e fundamentalismo religioso. Do voto crítico ao anúncio da austeridade Finalmente, as eleições de 2014 provocaram uma verdadeira fissura no imaginário político brasileiro, atingindo níveis de virulência não vistos desde pelo menos 1989. A estratégia de marketing da campanha governista perdeu todo pudor e deixou de usar o meio-tom sugestivo para difamar e mentir descaradamente. A ideia de que, uma vez eleita a candidata, vira-se a página e pronto, desconsiderou a politização (para bem e para mal, não importa) da sociedade desde 2013. Assim, a palavra de Dilma e o chavão de "evitar a todo custo a volta da direita" fez emergir o "voto crítico", atitude desesperançada de eleger o "menos pior" que possibilitou a reconexão do PT às suas bases tradicionais, apesar da insatisfação com o governo, fazendo a diferença de votos necessária para garantir a vitória. Esse apoio, no entanto, estava à beira da ruptura. Podemos ler esse "crítico" como se diz "em estado crítico", à beira da morte. Por isso, o anúncio do ministério - com nomes como Joaquim Levy, Katia Abreu, Eliseu Padilha, Gilberto Kassab, Helder Barbalho e outros - acabou gerando uma aversão imediata em relação àqueles que esperavam (irrealisticamente) a "guinada à esquerda". Em seguida, anuncia-se a adoção da austeridade fiscal comandada por um ministro vinculado aos bancos e os cortes generalizados em setores fundamentais para a qualidade de vida da sociedade brasileira, em especial a educação e a assistência social.
O que está acontecendo no Brasil é efeito de uma transformação dos nossos laços sociais. Toda desconstrução, lembrando ainda Derrida, tem uma carga de morte. Algo morreu e está morrendo ainda. Ao vermos figuras como Renan Calheiros e Eduardo Cunha, não podemos deixar de vê-los como zumbis de um tempo que já passou. O PMDB fisiológico que hoje tem o controle do país é a antítese daquilo contra o que as ruas de 2013 lutaram. Eles integram nosso espaço político como zumbis: persistentes, inabaláveis, vorazes e sem futuro. Por outro lado, a violência que explode em linchamentos, chacinas, extermínios que se propagam pelo país é sintoma desse choque recalcado, como o real que aparece para além do teatro do poder de Brasília.Você também chama atenção para o fato de que tanto o Podemos como o Syriza mostram as dificuldades políticas e econômicas dos países europeus e insiste que uma alternativa deveria brotar de “coletivos de ocupação”, por exemplo. Por que esses coletivos seriam uma alternativa? Qual o potencial político deles no sentido de mudar a lógica existente? Moysés Pinto Neto - Podemos e Syriza são tentativas de enfrentar o ethos da austeridade que tem predominado na Europa comandado pela Alemanha. Mas, mais que nunca, são expressão de um dilema contemporâneo: como sair do neoliberalismo? A resposta mais sincera seria: ainda não sabemos bem. As alternativas apresentadas - a retomada de Estado de bem-estar, o modelo chinês e os progressismos populistas latino-americanos - não apresentaram sua viabilidade. Caíram em crise. O Estado de bem-estar foi construído em outro contexto, no mundo fordista em que os Estados nacionais e a indústria tinham um papel decisivo. O modelo chinês, além do tratamento predatório com o trabalhador, já mostra o colapso ambiental. Finalmente, o populismo latino-americano, como Salvador Schavelzon escreveu recentemente, também está vivendo seus dilemas, bastando olhar para Brasil, Argentina e Venezuela. Ele não conseguiu apresentar uma alternativa consistente que não seja um estatismo burocrático e centralizador fascinado por uma infraestrutura produtivista e industrialista, sem levar em consideração a questão ambiental, as demandas da qualidade de vida e os direitos das populações ameríndias. Mantém-se com base no que Rodrigo Nunes chama de "complexo do Katechon", ou seja, baseando-se sua sustentação não em resultados consistentes, mas na ameaça do retorno do anticristo (neoliberalismo). O Syriza baseou-se na retomada de plataforma clássica da esquerda, no enfrentamento direto do problema da austeridade. Porém, rapidamente deparou-se com o dilema de uma sociedade internacionalizada (que não quer sair da comunidade europeia) e seus constraints, recuando da estratégia agressiva. É cedo para julgar essa ação. Há várias formas de ler o cenário. Já o Podemos aposta em desvincular-se da ideia de esquerda, fazendo a retórica "baixo contra cima", da "gente" contra o "casta", e retoma a liderança vertical na figura de Pablo Iglesias. Sou um pouco cético em relação a tudo isso, mas é preciso acompanhar. Quando falo dos coletivos de ocupação, estou me referindo a um novo experimento político que tenta ressignificar as noções de trabalho, família, propriedade, educação, alimentação, autonomia, etc., forjando um novo complexo espaço-tempo que foge da normalidade sufocada pelo capitalismo consumista. Não é uma alternativa que se volta para o poder central, mas procura corroê-lo pelas bordas, fazendo com que o micro se espalhe por ondas concêntricas. Evidente que esse experimento tem limites, mas podemos ligá-lo, por exemplo, com a "aposta municipalista" espanhola, a perceber que o espaço da cidade é o tema determinante que entrou na agenda do século XXI. É impressionante o crescimento da discussão no Brasil e - uma vez mais - foi exatamente isso que 2013 colocou na pauta totalmente ignorada tanto pelo governismo quanto pela oposição. Além de articulações com coletivos, quais seriam outras alternativas para sair da crise política? Moysés Pinto Neto - É difícil falar disso sem parecer que estamos diante de uma fórmula. A única maneira que vejo de reagir contra a crise é reabrir o espaço que foi sufocado pelo "realismo" do jogo de xadrez do poder. Já sabemos que o sistema político quer apenas "gestão", está preocupado unicamente em como governar a vida mantendo tudo como está. A própria transição de Lula para Dilma foi comemorada como uma "gestora no poder", celebrando-se a tecnocracia. Hoje sabemos que - além da má gestão (autoritária, casuísta, equivocada nos investimentos) -, a própria ideia de gestão não esteve à altura dos desafios políticos que os últimos dois anos colocaram. Precisamos retomar a dimensão espectral da política, do sonho, abrindo o horizonte para além do possível. O nome disso, a meu ver, é utopia. É retomando a utopia de um país menos violento, mais justo, com preocupações ecológicas genuínas, radicalmente voltado para a educação e aberto para desenhar alternativas econômicas à austeridade e ao estatismo, que podemos respirar fora desse mundo sufocante de índices vazios, duelo de mediocridades e repetição do mesmo. Não apenas o Brasil, mas o mundo está desejante dessa utopia. “A única maneira que vejo de reagir contra a crise é reabriro espaço que foi sufocado pelo 'realismo' do jogo de xadrez do poder”.
Que tipo de teorias políticas e econômicas deveria servir de base para fundamentar um novo projeto para o Brasil?Moysés Pinto Neto - Seria uma atitude um pouco arrogante, no mínimo, querer sugerir um roteiro de leituras obrigatórias para fundamentar um novo projeto. Essa postura, além de intelectualista ao excesso, desconsideraria a complexidade do mundo atual e a miríade de questões que exigem um tratamento dedicado e delicado. Vou me dar a liberdade apenas de levantar alguns temas que tenho me dedicado a pesquisar e acredito serem importantes para o debate público brasileiro. Divido em três grandes áreas: primeiro, a chamada "virada ontológica" e a possibilidade de que os parâmetros filosóficos fixados pelo Ocidente possam mostrar sua contingência – e, portanto, abrir espaço para novos modelos cosmológicos - ou cosmopolíticos. Dentro desse circuito de desconstrução - não foi a outro fenômeno que se referiu Jacques Derrida, ainda em 1967, quando percebia o desabamento dos nossos principais eixos (antropocentrismo, falocentrismo, eurocentrismo, logocentrismo, entre outros) - a virada descolonizadora para as alternativas afro e ameríndias, que envolvem a reconsideração não apenas da zona que chamamos "cultura", mas inclusive aquilo que de direito pertenceria ao Ocidente (com a ciência), chamado "natureza", sobretudo no momento em que o termo Antropoceno passa a desempenhar um papel decisivo no debate. Nesse sentido, o boom recente em torno do nome de Eduardo Viveiros de Castro não é apenas uma moda passageira, mas o reconhecimento de que precisamos de uma nova forma de pensar que Viveiros, traduzindo o pensamento indígena, provoca em nós mesmos. Segundo, os estudos em torno do que alguns chamam de "decrescimento", consistente no desafio ao modelo atual baseado na ideia de progresso linear e na intoxicação da linguagem do crescimento por todos os âmbitos da vida, produzindo uma subjetividade estressada, uma sociedade do cansaço e um meio ambiente irrespirável. O que se ventila hoje no Brasil em termos políticos - tanto por neodesenvolvimentistas quanto por neoliberais - é simplesmente mais e mais aceleração e produção, mais do mesmo.
Por isso, acredito que ambos os programas - ainda que com variações - caberiam na tendência que alguns nomeiam "aceleracionismo". O contraponto a isso seria a retomada do local - que se manifesta nos municipalismos espanhóis, nas zonas autônomas temporárias, ocupações, entre outros -, na desconstrução da hierarquia entre o manual e o intelectual com a revalorização de atos perdidos na vida urbana como plantar e cuidar, preparar a comida, a diminuição da hipnose provocada pelo dinheiro e pelo consumo, e, finalmente, em contraponto à figura do trabalhador e o culto ao trabalho, um desejo de interrupção, de preguiça, a valorização da não produção, do ócio, do sono e do sonho enquanto suspensões da compulsão utilitarista e eficientista da nossa sociedade e seus sujeitos dopados sob efeito de drogas - próteses para suportar esse ciclo insanamente irracional. Sem falar no impacto ambiental de um projeto cujo sucesso e expansão é a porta para o fim de muitos mundos - incluindo o nosso. Finalmente, o terceiro grupo seria aqueles que dedicam à sinergia entre a revolução da microinformática sobre a sociedade, o apagamento da distinção entre o digital e o real, e o ressurgimento de novas formas de relações econômicas, fundadas no compartilhamento, na contribuição e na dádiva. A simetria na troca combinada à obsolescência programada que caracterizam a sociedade do consumo - infelizmente único projeto do PT para o Brasil atual - dá lugar a uma multiplicidade de arranjos colaborativos que funcionam como ponta da tecnologia, criando um laboratório de práticas que não cabem mais estritamente no modelo capitalista. Aqui, sem dúvida, precisamos estar atentos para a possibilidade de pensar a economia por fora do velho dilema entre Estado e Mercado que caracteriza o debate atual, apostando que é possível furar por dentro tanto a tecnoburocracia vertical quanto a exploração econômica. São três novos eixos que contribuem para "liberar nossa ideia de espaço-tempo", como diz Viveiros de Castro, e é nada menos que isso que é necessário, enquanto utopia, contrapor ao deserto de ideias que povoa a luta vazia pelo poder do sistema político.
(Entrevista feita por Patrícia Fachin, publicada originalmente pelo IHU da Universidade de Rio dos Sinos, Unisinos, RGS, reproduzida com autorização do entrevistado Moysés Pinto Neto, doutor em Filosofia pela Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professor na Faculdade de Direito da Universidade Luterana do Brasil, Porto Alegre). Patrícia Fachin,  jornalista formada pela Universidade Católica Unisinos, editora do site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), no Rio Grande do Sul. Direto da Redação é um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.
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